Análise crítica dos documentos de alto nível da defesa do Brasil

(PND, END e LBDN, versão 2020)

Eduardo Siqueira Brick[1], PhD

Professor Titular (aposentado) da Universidade Federal Fluminense

UFFDEFESA – Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial

[1] O autor, membro da Academia Nacional de Engenharia (ANE), é um profissional com mais de 50 anos de envolvimento com o preparo da defesa, nas FFAA, na iniciativa privada (como criador e responsável por uma indústria de defesa, por 13 anos) e, também, como acadêmico, com atuação, há mais de 40 anos, em cinco programas de pós graduação, envolvidos com pesquisa, ensino e atividades de extensão sobre defesa, indústria e CT&I, em instituições de ensino superior federais e privadas.

Este Sumário Executivo tem como propósito apresentar os principais resultados, conclusões e recomendações extraídos da análise crítica dos documentos de alto nível da defesa, submetidos à aprovação do Congresso Nacional pelo Ministério da Defesa, no dia 22/07/2020: Política Nacional de Defesa (PDN), Estratégia Nacional de Defesa (END) e Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN).

O assunto é muito complexo e sua análise exigiu ampla fundamentação teórica e empírica, resultando em um texto muito extenso, contido em um outro documento. Por este motivo, no intuito de facilitar o acesso aos seus resultados, foi preparado este Sumário Executivo, contendo apenas conclusões, recomendações e algumas informações fundamentais para o seu entendimento. Esses dois textos são complementares e devem trabalhar juntos. Quem desejar conhecer com mais profundidade a fundamentação e o detalhamento da análise deverá consultar o Documento Completo.

A análise foi feita sob a perspectiva da gestão estratégica da defesa, que envolve decisões de alto nível, relacionadas com a alocação de substanciais recursos públicos para atingir objetivos políticos do país no campo da defesa.

Procurou-se responder a quatro questões-chave para o preparo da defesa. Duas relacionadas à definição do problema da defesa, e duas relacionadas à sua solução.

Em primeiro lugar, para definir o problema da defesa, é preciso responder às questões “defesa para quê” (objetivos mais amplos de uma Grande Estratégia e contingências, definidas por tarefas e cenários, que possam exigir o emprego de Forças Armadas.) e “defesa contra quem” (ameaças).

Esta é uma responsabilidade do mais alto escalão do Poder Político do país, representado pelo Congresso Nacional e pela Presidência da República.

Em um regime democrático, o Poder Político é a única instância do Estado que possui legitimidade para exercer a autoridade, delegada em eleições livres, para resolver os problemas dos cidadãos. Responsabilidade, como todos militares sabem muito bem, é intransferível. Pode-se delegar autoridade para resolver problemas, mas nunca a responsabilidade sobre eles.

Uma vez definido o problema da defesa, expresso pelos objetivos a alcançar, e pelas contingências que se espera enfrentar, o próximo passo é o preparo para enfrentá-las. Nesta fase é preciso responder à questão “defesa com o quê”, para que se possa definir e priorizar tudo aquilo que deve ser objeto desse preparo, considerando os objetivos a alcançar, as tarefas, ameaças e cenários, e as restrições de toda ordem (financeiras, tecnológicas, industriais, humanas e de relações internacionais).

A experiência internacional tem comprovado que o sucesso nessa empreitada depende sobremaneira de como o preparo é feito. Esta, está intimamente ligada à forma como estão estruturadas as instituições de defesa, tanto em termos de organização como dos processos empregados e, também, quais são os atores envolvidos, suas qualificações, responsabilidades e autoridade. Todos esses aspectos são abordados na questão-chave “defesa como”?

O problema mais evidente encontrado na análise dos documentos, e também o mais grave, está associado exatamente à questão “defesa como”.

Não existe uma orientação política, emanada dos altos escalões da República, definindo o problema da defesa e relacionando-o a objetivos mais amplos de uma Grande Estratégia para o país. Objetivos mais amplos são fundamentais, porque eles condicionam a solução do problema da defesa e, portanto, estabelecê-los, é um pré-requisito para o adequado planejamento e preparo.

Três aspectos muito negativos chamam imediatamente a atenção de quem analisa os documentos sob a perspectiva da gestão estratégica da defesa:

  1. Não apresentam orçamentos para os projetos propostos pelas FFAA e, muito menos, sua distribuição ao longo do tempo. O Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN) olha apenas para o passado e, não para o futuro, como são os livros brancos de todos os países. A única alternativa considerada é pedir mais recursos (2% do PIB), sem definir bem para quê.
  2. Não existe qualquer indicação de prioridades. (Tudo é prioritário? E se o orçamento não for suficiente para tudo?)
  3. Não existe um Plano B, que considere a hipótese (altamente provável) de não ser possível aumentar o orçamento. Nessas condições, é razoável esperar que se procure eliminar coisas que agreguem pouco valor à defesa (efetivos e meios e instalações obsoletas, por exemplo) e implementar reformas para aumentar a eficácia e a eficiência do sistema, liberando recursos. A maioria dos países vêm recorrendo a esta medida nos últimos anos, premidos, que são, assim como o Brasil, por restrições orçamentárias (este foi o principal problema detectado na análise dos documentos).

Como consequência, pode-se afirmar, com base nas perspectivas de análise utilizadas, que esses documentos sofrem de falta de propósito e legitimidade, por não fazerem nenhuma referência à política, e não fazem muito sentido, por não atentarem para a necessidade observar os ditames do constructo da estratégia (fins políticos, caminhos, meios e premissas) na sua elaboração.

A causa visível é que o planejamento foi feito de baixo para cima, contrariando, não só o arcabouço teórico e conceitual aplicável, como também a experiência internacional.

Entretanto, a causa primária está na inadequação das instituições que cuidam da defesa, não só no âmbito do Ministério da Defesa (MD), mas também no mais alto escalão de poder da República: o Congresso Nacional e a Presidência.

Essa questão não foi sequer mencionada nos documentos elaborados pelo MD. Mas, isso é o esperado, porque nenhuma reforma dessa natureza, até hoje, partiu das FFAA, de nenhum país. As reformas sempre partiram do Poder Político.

Portanto, obviamente, o problema não será solucionado se os documentos forem aprovados pelo Congresso sem um escrutínio rigoroso, que conduza a uma profunda revisão que os redirecionem, prioritariamente, para uma reforma profunda, e não superficial, das instituições que cuidam da defesa.

Esse é o principal e mais urgente problema relacionado à defesa do país para o qual se deve buscar uma solução. Se isso não for feito agora, aproveitando a oportunidade oferecida pelo encaminhamento dos documentos ao Congresso Nacional, as consequências a médio e longo prazo para a defesa serão muito sérias e o Brasil perderá mais algumas décadas desperdiçando enormes quantidades de recursos para alcançar objetivos secundários, deixando sem atenção objetivos mais importantes, vitais e realmente estratégicos para o país.

Um desses objetivos estratégicos está diretamente relacionado à relação que existe entre defesa e desenvolvimento.

Todos os documentos que se destinam a definir políticas públicas industriais, de CT&I e de defesa, produzidos pelos governos brasileiros nas últimas décadas, e que poderiam ser interpretados como relacionados com uma Grande Estratégia, definem o objetivo de capacitação industrial em produtos de alto valor agregado, que utilizam altas e média-altas tecnologias.

Ora, os investimentos em desenvolvimento e aquisição de produtos de defesa complexos, são umas das principais ferramentas para alcançar esse objetivo. Mas, essa atividade é completamente diferente das de operações de combate, para as quais os militares são preparados e suas instituições foram concebidas. A atividade exige organizações, processos, meios e pessoas com características completamente diferentes das que são típicas das FFAA.

Por este motivo, os países, com alguma relevância industrial, tecnológica e militar, estão criando instituições, não subordinadas às FFAA, centralizando a missão de cuidar do desenvolvimento e aquisição de produtos de defesa e da concepção e implementação de políticas industriais e de CT&I, destinadas a desenvolver e sustentar industrias estratégicas de defesa. No entanto, no Brasil, essas atividades ainda estão subordinadas às FFAA e, pior, de uma maneira completamente fragmentada e dispersa.

Tendo em vista a complexidade do problema, as graves consequências para a defesa, advindas de eventuais erros cometidos na sua solução, a urgência com que essas soluções devem ser encontradas e a oportunidade oferecida pelo fato de que a atual etapa do processo de aprovação dos documentos encontra-se nas mãos do Congresso Nacional, urge que, todos aqueles que possam oferecer alguma contribuição para a solução dos problemas existentes, assim o façam.

Este é o principal objetivo da análise crítica que foi feita e desses documentos.

O texto foi lido e criticado por quatro profissionais sênior, altamente qualificados e com muito conhecimento e experiência nos temas tratados: dois oficiais generais das FFAA, um diplomata e um acadêmico. As valiosas críticas e sugestões por eles oferecidas foram de inestimável valor para o aprimoramento dos textos. Entretanto, a responsabilidade pelo seu conteúdo é única e exclusiva do seu autor.

Além do já citado problema de inadequação das instituições, também ficou evidente que uma das causas dos problemas encontrados pode ser advinda do fato de que foram ignoradas boas práticas internacionais, que são abundantes.

Por este motivo, procurou-se, também, extrair da experiência internacional bem sucedida em planejamento da defesa, lições que pudessem ajudar na análise. A lógica subjacente é a de que é melhor aprender com os erros e acertos de outros do que pagar um alto preço por erros que poderiam ser evitados, se observada a experiência alheia. Sempre que possível, essas experiências são mencionadas.

O conhecimento de um arcabouço conceitual, adequado para se planejar defesa na era pós-industrial, mostrou-se também fundamental para identificar vários problemas considerados muito graves no planejamento. Muitos desses problemas tiveram como causa-raiz o uso de uma base conceitual, desatualizada e limitada.

Tanto a experiência internacional, quanto o arcabouço conceitual apropriado para tratar do preparo da defesa, foram usados para fundamentar os diagnósticos, as conclusões e as recomendações. Essa fundamentação, sem a pretensão de ser definitiva ou absoluta, também poderá ser útil para todos os que desejarem participar do amplo debate nacional que, espera-se, o Congresso Nacional venha a convocar para discutir e criticar os documentos. Por este motivo, é disponibilizada uma Síntese da Fundamentação Utilizada na Análise no ANEXO A.

As Conclusões e Recomendações do Documento Completo, também constam do ANEXO B deste sumário.

ANEXO A

SÍNTESE DA FUNDAMENTAÇÃO UTILIZADA NA ANÁLISE

O conceito mais importante a ser destacado é o de logística de defesa. Isto porque os documentos analisados tratam do preparo da defesa, e a principal atividade da logística de defesa em tempos de paz é o preparo. Uma boa parte dos problemas detectados no planejamento se deve a uma desatualização do conceito de logística de defesa que consta da END, na parte que descreve as capacidades necessárias.

Logística de defesa é uma atividade destinada a criar e sustentar capacidade militar.

 

Cabem algumas considerações sobre o moderno conceito de capacidade militar.

Capacidade militar é uma combinação de capacidade operacional de combate e capacidade de logística de defesa e se mede por proficiência em combate contra ameaças e em cenários definidos.

Portanto, capacidade militar não é só combate e, também, não pode ser avaliada de forma absoluta. Só tem sentido se avaliada de forma relativa. Uma capacidade militar pode ser considerada elevada contra um inimigo fraco, e nula contra um inimigo forte. O mesmo vale para os cenários. Um exemplo seria uma brigada de carros de combate. Em um cenário de campo aberto, terá uma dada eficácia. Na selva, não terá nenhuma utilidade. Portanto, é fundamental se saber contra quem e para quais condições de combate se está preparando a defesa. Ou seja, não basta definir quais são as tarefas que as FFAA deverão ser capazes de executar, como está feito nos documentos. É preciso também, definir os cenários e as ameaças que, espera-se, tenham que ser enfrentadas. Os trinômios tarefa/ameaça/cenário (TACs), qualificam as contingências de defesa para as quais o preparo deve ser feito. Ameaças não precisam ser nominadas, mas é indispensável categorizá-las e detalhá-las. Essa é a maneira correta de se fazer o planejamento baseado em capacidades. E isso, aparentemente, pela análise de um cenário importante para a defesa, que consta do documento completo, não foi feito.

Capacidade militar só pode ser medida pela proficiência em combate das unidades militares empregadas em tarefas executadas contra ameaças, em cenários bem definidos (TAC). Portanto, não pode ser avaliada em termos absolutos e, sim, relativos.

Da mesma forma, modernamente, não se concebe capacidade militar sem uma capacidade industrial e de inovação para defesa (parte da capacidade de logística de defesa). Isso porque, a tecnologia evolui com enorme velocidade e os meios ficam obsoletos com muita rapidez. Mas, não só os meios. Os componentes com que são fabricados, também ficam obsoletos e ficam indisponíveis no mercado com muita rapidez, impedindo que esses meios sejam mantidos. Portanto, é uma grande ilusão basear capacidade militar apenas em efetivos e inventário de meios (principalmente se forem adquiridos de um outro país).

Capacidade militar = capacidade operacional de combate + capacidade de logística de defesa

O ponto fundamental a ser destacado é que, para países com as características do Brasil, não é possível desenvolver capacidade militar sem esses dois essenciais componentes.

 

A capacidade militar é provida por sistemas construídos para esse fim. O preparo serve exatamente para aparelhar esses sistemas e sustentar seu emprego.

Então, quais são esses sistemas, que irão prover a capacidade militar, e que devem ser o objeto do preparo?

As Forças Armadas (FFAA) são, há séculos, o instrumento de defesa adequado para prover capacidade operacional de combate.

Resolvida essa questão, qual seria o sistema que deverá prover a componente logística de defesa da capacidade militar?

Aqui surge um problema. As atividades de operações de combate são completamente diferentes da maioria das atividades de logística de defesa. Essas exigem profissionais, processos, instituições e carreiras também completamente diferentes. Portanto, dificilmente essas duas atividades poderão ser desenvolvidas por uma mesma organização.

Como consequência, a maioria dos países já reconheceu que é necessário criar um outro instrumento de defesa para cuidar da logística de defesa. O nome para designar um sistema com essas características não é relevante, apenas as funções que ele desempenha. Neste trabalho foi usada a designação Base Logística de Defesa (BLD).

O preparo visa à criação e sustentação simultânea de dois Instrumentos da Defesa essenciais: Forças Armadas (FFAA) e Base Logística de Defesa (BLD).

 

É importante entender que o sistema BLD opera tanto do lado da demanda, quanto do lado da oferta.

Do lado da demanda, a BLD é parte do Estado e cuida, por exemplo, da especificação, desenvolvimento, aquisição e teste e avaliação operacional de produtos e tecnologias de defesa, fomento à exportação desses produtos e, também, de políticas industriais e de inovação específicas para defesa.

Do lado da oferta, ela inclui, por exemplo, as indústrias de defesa, os Institutos de Ciência e Tecnologia (ICT) e organizações que fornecem serviços de manutenção, transporte, armazenamento, saúde e hospedagem, entre outros. O lado da oferta pode ser provido pelo Estado, ou pela iniciativa privada.

O Ministério da Defesa adota apenas o conceito de Base Industrial da Defesa. Ou seja, considera apenas parte do lado da oferta da BLD. O lado da demanda, que é estratégico, e é quem conduz o preparo, não é reconhecido como tal, e é delegado às FFAA, de uma maneira totalmente descentralizada. Como mostra o documento completo, esse fatiamento do problema entre muitas autoridades, impede que se possa cuidar adequadamente do desenvolvimento e sustentação da BLD.

A fundamentação dessa conclusão pode ser inferida diretamente do entendimento do conceito de logística de defesa, em toda a sua amplitude.

Existem três tipos de logística de defesa, que são complementares, mas que têm finalidades bem distintas.

A mais conhecida e praticada pelos militares, e que consta de suas Doutrinas e da própria END, é a Logística de Operações.

Logística de Operações tem por finalidade sustentar o emprego das FFAA nas suas operações de combate, ou afins (garantia da lei e da ordem, calamidades, etc.).

 

É este o conceito de logística que está explícito na END, sob a denominação de Logística Militar. É um conceito muito limitado e inadequado para um documento destinado a decisões de alto nível sobre defesa, envolvendo o Congresso Nacional.

Os outros dois tipos de logística de defesa, que são específicos para o preparo, e adequados ao alto nível dos documentos, não foram considerados de uma forma explícita e holística.

O segundo tipo de logística de defesa é a Logística de Aparelhamento das FFAA.

Logística de Aparelhamento das FFAA tem por finalidade suprir as FFAA com os meios necessários para montar unidades militares destinadas a operações de combate (brigadas, forças navais, bases, esquadrilhas de aeronaves, sistemas de comando e controle, etc.) e os consumíveis (munições, sobressalentes, etc.) usados nessas operações.

 

Esta logística é tratada apenas indiretamente nos documentos, nas propostas de aquisições de meios para as FFAA.

Os documentos analisados assumem, implicitamente, que a capacidade industrial para fornecer esses produtos será propiciada pelo “mercado”, ou poderá ser “mobilizada”, porque não elencam nenhuma medida concreta, nem recursos orçamentários, para desenvolver e sustentar essa capacidade industrial essencial, a não ser a definição de  projetos de aquisições de meios pelas FFAA (mas também sem definir os custos desses projetos, nem priorizá-los!).

Esse pode ser considerado como um erro grave nesse planejamento, porque ignora as características específicas de uma indústria de defesa realmente estratégica. Essas industrias são responsáveis pelo desenvolvimento e manufatura de produtos complexos, com o uso de altas e médias-altas tecnologias,  tais como: aeronaves, mísseis, navios de guerra, carros de combate, radares, sonares, veículos não tripulados, robôs, satélites e seus lançadores, munições inteligentes, equipamentos de guerra eletrônica, entre outros.

Produtos realmente estratégicos de defesa não são encontrados no “mercado”, porque, além de complexos, são caros e especificados sob medida para uso exclusivo das FFAA.  Ou seja, essas empresas operam em um mercado com características monopsônicas do lado da demanda (apenas um comprador). Da mesma forma, o elevado custo unitário desses produtos, e as sempre presentes limitações orçamentárias, tornam impossível a um país como o Brasil sustentar mais de uma empresa com essas características, para um mesmo produto. O mercado para esse tipo de indústria, do lado da oferta, tem características de monopólio. Portanto, em todos os países, existe uma relação simbiótica entre essas empresas e o Estado. Este fato implica em que deve haver uma regulação e um controle mais rígidos do Estado sobre essas indústrias.

Existem muitas outras indústrias que fornecem produtos de defesa menos complexos, tais como uniformes, armas e munições de pequeno porte, tintas, entre outros, que não necessitariam ser considerados estratégicos, porque têm um mercado civil relevante capaz de sustentar as empresas. O mercado para essas indústrias normalmente não possui características monopsônicas, nem monopolistas e essas empresas demandam menor atenção do MD.

A distinção entre um produto (e, portanto, uma empresa) estratégico de defesa e um outro que não é estratégico, tem uma finalidade prática, com enorme impacto no planejamento da defesa. A diferença principal é exatamente a possibilidade real de ser fornecido pelo “mercado”, ou não, com implicações na necessidade de o Estado alocar recursos do orçamento para desenvolvê-los.

A outra implicação dessa classificação está relacionada com a construção de um sistema de mobilização industrial. Na Segunda Guerra Mundial essa medida foi fundamental para a vitória dos aliados. Entretanto, existe uma grande diferença entre as condições que prevaleciam naquela época e as atuais. Então, os produtos e sistemas de defesa eram bem menos complexos e, também, possuíam menor eficácia (precisão, alcance e poder destrutivo, principalmente) e isso exigia que fossem usados em grandes quantidades. A sua “simplicidade” (relativa aos meios atuais) permitia a rápida transformação da indústria civil para o esforço de guerra. Isso não é mais possível quando se trata de produtos complexos. Seu desenvolvimento exige o domínio de altas e médias altas tecnologias e pode demandar tempos muito longos, da ordem de décadas.

Assim, para produtos estratégicos, não há alternativa senão desenvolver e sustentar, com elevada prontidão, uma base industrial específica para eles. Ou seja, o desenvolvimento e a sustentação das empresas de defesa realmente estratégicas, que correspondem ao “núcleo duro” da BLD, é responsabilidade estatal, tanto quanto o desenvolvimento e sustentação das FFAA e, por isso, têm que estar contemplados no orçamento de defesa.

O MD, através da Comissão Mista da Indústria de Defesa (CMID) tem sido pouco seletivo na atribuição do selo de estratégico para produtos de defesa. Basta ver as portarias do MD que contém essas classificações (https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/industria-de-defesa/comissao-mista-da-industria-de-defesa-cmid).

Essa liberalidade impede que o MD possa priorizar aquilo que é mais importante e depende totalmente de recursos do orçamento de defesa.

Mas, não é só para a defesa que a BLD é estratégica. Existe uma outra característica das indústrias de defesa, que são muito dependentes do domínio de altas e média-altas tecnologias, que se relaciona diretamente com a reconhecida ligação entre defesa e desenvolvimento, que consta dos documentos.

Investimentos estatais no desenvolvimento de produtos de defesa têm sido a tônica das políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico dos países da OCDE. Dados levantados[1], relativos ao período 1980-2010, mostram que os percentuais dos investimentos totais dos governos de países da OCDE em pesquisa e desenvolvimento (P&D), que foram feitos pelos Ministérios de Defesa, são muito elevados, podendo chegar a 70%. Portanto, são considerados importante ferramenta para o desenvolvimento industrial e tecnológico. Entretanto, no Brasil esse percentual é mínimo, da ordem de 1%.

Ora, todas os documentos que se destinam a definir políticas públicas industriais, de CT&I e de defesa produzidos pelos governos brasileiros nas últimas décadas, definem o objetivo de capacitação industrial em produtos de altas e média-altas tecnologias. Investimentos em desenvolvimento e aquisição de produtos de defesa complexos, são umas das principais ferramentas para alcançar esse objetivo.

Todos esses argumentos levam à conclusão de que é preciso que o Estado tenha condições de desenvolver e sustentar esse tipo de capacidade de logística de defesa, pois ela não só é essencial para o preparo das FFAA, como também é importante ferramenta de desenvolvimento industrial em produtos de alto valor agregado para uso civil. O exemplo da Embraer é bem ilustrativo dessa afirmação.

Não há dúvidas de que o desenvolvimento e aquisição de produtos de defesa é um dos principais instrumentos para viabilizar uma base industrial de defesa fornecedora de produtos estratégicos. Mas, essa ferramenta não será suficiente se o objetivo dessas aquisições for apenas suprir as FFAA.

Neste ponto, chegamos ao terceiro tipo de logística de defesa, que também pode ser considerada como indispensável e estratégica, porque está voltada para desenvolver o poder efetivo do país, nos seus componentes industrial, tecnológico e militar, a médio e longo prazos: a Logística de Criação e Sustentação da BLD, ou, abreviadamente, Logística da BLD.

O objetivo estratégico de capacitação industrial em produtos que dependem de altas e média-altas tecnologias, tanto para defesa, como para o desenvolvimento do país, jamais poderá ser atingido se deixado apenas ao sabor das necessidades imediatas das FFAA e das forças do “mercado”.

O desenvolvimento e sustentação da BLD exige uma condução competente, planejada e persistente durante algumas décadas por parte do Estado. Esta é a finalidade precípua da Logística da BLD.

As boas práticas internacionais mostram que, para isso, é preciso existirem instituições com características muito diferentes das FFAA, em termos de organização, processos, meios e qualificações profissionais.

Logística da BLD tem por finalidade:

a)    Desenvolver a capacidade do Estado para cuidar do lado da demanda da BLD (recrutar, qualificar e reter recursos humanos adequados; desenvolver processos adequados ao planejamento da defesa, que levem em consideração o orçamento, as contingências e as capacidades militares necessárias; manter instalações adequadas para fazer teste e avaliação operacional de produtos e sistemas de defesa; entre outros.)

b)    Desenvolver e/ou sustentar indústrias de defesa e tecnologias (principalmente as altas e médias-altas) para produtos realmente estratégicos de defesa, com o uso das aquisições para as FFAA e outras políticas industriais, de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) e de exportação desses produtos.

 

O fato de o Brasil não estar em uma situação de iminência de conflito, reforça a prioridade que deve ser dada ao desenvolvimento e sustentação da BLD, porque os meios das FFAA ficam obsoletos muito rapidamente. Tendo em vista as restrições orçamentárias sempre presentes, investimentos em grandes quantidades desses meios podem representar desperdícios e, também, implicar em elevados custos de oportunidade, pois acabam contribuindo para descontinuidades nos esforços de sustentação das indústrias estratégicas.

Todas essas considerações levam à conclusão de que uma política de desenvolvimento e aquisição de produtos estratégicos de defesa (o cerne dos documentos), ideal para um país como o Brasil, seria:

  1. Investimentos contínuos no desenvolvimento de tecnologias críticas e produtos de defesa considerados essenciais para as contingências possíveis no horizonte de planejamento, nas empresas consideradas estratégicas;
  2. Execução de exaustivos testes e avaliações operacionais, antes de homologar produtos para aquisição e uso;
  3. Manutenção de linhas de montagem com baixa capacidade para os produtos homologados e produção anual de pequenos lotes, com o propósito de estender o máximo que for possível a regularidade da demanda;
  4. Realização de testes e avaliações operacionais mais simplificados, para cada novo lote produzido, e monitoramento controlado do seu uso para detectar problemas e possibilidades de aprimoramentos (um problema recorrente é a obsolescência de componentes e a sua retirada do mercado, dificultando e, até mesmo, impedindo a manutenção.);
  5. Implementar atualizações, correções e melhorias nos produtos, antes de encomenda do próximo lote.
  6. Repetir o processo.
  7. Contratar serviços de manutenção com as empresas, como forma de garantir a disponibilidade dos meios e manter uma carga de trabalho contínua para seus técnicos especializados nos produtos estratégicos.

Não parece ser essa a estratégia adotada, pelo que se pode depreender dos documentos divulgados pelo MD.

Finalmente, é possível juntar todos esses conceitos para definir gestão estratégica da defesa.

Gestão estratégica da defesa pode ser resumida como sendo o estabelecimento de soluções de compromisso (trade-offs), envolvendo os Recursos Estratégicos da Defesa. Ou seja, trade-offs entre alocações do orçamento de defesa para desenvolver e sustentar simultaneamente as Forças Armadas e a Base Logística de Defesa. Ou ainda, trade-offs entre capacidade operacional de combate e capacidade de logística de defesa.

 

O primeiro ponto a destacar é que soluções de compromisso obrigam a que se priorize o que é mais importante. O segundo ponto, é que existem dois níveis de trade-offs a considerar.

No nível macro, as soluções de compromisso se aplicam aos Instrumentos de Defesa como um todo.  Na prática, decidir sobre percentuais do orçamento dedicados ao desenvolvimento e sustentação de capacidades operacionais de combate ou de logística de defesa. Um bom indicativo das escolhas feitas, é o percentual do orçamento de defesa dedicado ao desenvolvimento e aquisição de produtos sistemas de defesa na BLD nacional.

No nível interno, de cada um dos Instrumentos de Defesa, as soluções de compromisso se aplicam aos percentuais do orçamento destinados à criação e sustentação dos diferentes tipos de capacidades operacionais de combate e de logística de defesa.

As capacidades operacionais de combate podem ser proporcionadas por contribuições das três forças. Por isso é essencial sempre considerar capacidades conjuntas de uma forma integrada.

Alternativas de capacidades de logística de defesa se referem a que tipos de indústrias sustentar e que tipos de tecnologias desenvolver com recursos do orçamento.

 

 

ANEXO B

CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

Foi feita uma análise crítica dos documentos de alto nível da defesa (PDN, END e LBDN) sob as lentes do arcabouço conceitual da gestão estratégica da defesa, que rege a atividade de planejamento da defesa no nível em que esses documentos se situam na hierarquia do Estado e, também, de lições extraídas da experiência internacional bem sucedida relacionada a esse problema.

Esse arcabouço mostra que o planejamento da defesa deve ser condicionado por objetivos mais amplos de uma Grande Estratégia do país. Grandes estratégias normalmente não são definidas de forma explícita, mas podem ser inferidas indiretamente de declarações de autoridades e documentos setoriais de planejamento.

Todos os documentos que se destinam a definir políticas públicas industriais, de CT&I e de defesa, produzidos pelos governos brasileiros nas últimas décadas, e que poderiam ser interpretados como relacionados com uma Grande Estratégia, definem o objetivo de capacitação industrial em produtos de alto valor agregado, que utilizam altas e média-altas tecnologias.

A priorização desse objetivo no setor de defesa é coerente com a situação atual do Brasil, que poderia ser assim resumida:

  1. O Brasil, pela sua grandeza e poder potencial, para que possa elevar o nível de desenvolvimento humano de sua população, não pode abdicar de desenvolver uma capacidade industrial e de inovação em produtos de altas e médias-altas tecnologias.
  2. O país desfruta de um ambiente extremamente benigno no seu entorno estratégico, com ausência de ameaças visíveis em um horizonte de tempo razoável.
  3. Um dos instrumentos mais usados por países industrializados para desenvolver capacidade industrial e de inovação, em produtos de alta e média-alta tecnologias, tem sido os investimentos em P&D e aquisição de produtos de defesa de alta complexidade. As atuais instituições do Brasil para conduzir essas atividades estão muito defasadas em relação às boas práticas internacionais.
  4. Capacidade militar efetiva só existe quando se combina capacidade operacional de combate com capacidade de logística de defesa em produtos de defesa de alta e média-alta tecnologias. A primeira pode ser desenvolvida em prazos curtos, desde que a segunda exista. Já capacidade de logística de defesa demanda várias décadas para ser construída. Entretanto, os documentos de planejamento do preparo ainda não tratam objetivamente dessa questão.
  5. A capacidade militar de que o país dispõe hoje não é suficiente para enfrentar contingências que envolvam países com grande capacidade militar, e essa capacidade não poderá ser desenvolvida a curto prazo. Por outro lado, capacidade atual é suficiente para as atividades subsidiárias das FFAA e para enfrentar as ameaças que existem no entorno estratégico. Nesse cenário, o desenvolvimento e a sustentação de uma capacidade de logística de defesa, votada para produtos de alta e média-alta tecnologias, é muito mais estratégica do que a de uma capacidade operacional de combate.

Por todos esses motivos, existe uma janela de oportunidade única que deve ser aproveitada para o Brasil priorizar o desenvolvimento de sua capacidade de logística de defesa, relacionada a produtos que empreguem alta e média-alta tecnologias, pois esta será essencial nos médio e longo prazos e demanda várias décadas para ser alcançada.

Como o arcabouço conceitual aplicável e a experiência internacional indicam, esse objetivo recomenda que exista uma instituição, no âmbito do Estado, independente das FFAA, capaz de gerir com profissionalismo essa atividade.

A gestão estratégica da defesa consiste em soluções de compromisso envolvendo os Recursos Estratégicos da Defesa: o orçamento de defesa, as Forças Armadas e a Base Logística de Defesa.

A análise procurou responder às quatro questões-chave relacionadas a esse problema: “defesa para quê”, “defesa contra quem”, “defesa com quê” e “defesa como”?

Foram identificados vários problemas nesse planejamento que podem ser classificados como graves.

Uma conclusão de caráter geral, é que as principais causas podem ser encontradas nas respostas às questões-chave “defesa com quê” e “defesa como? Uma delas é o uso de uma base conceitual limitada e defasada em relação às boas práticas e necessidades derivadas de um planejamento de defesa na era pós-industrial.

Três aspectos muito negativos chamam imediatamente a atenção de quem analisa os documentos sob a perspectiva da gestão estratégica da defesa:

  1. Não apresentam orçamentos para os projetos propostos pelas FFAA e, muito menos, sua distribuição ao longo do tempo. O Livro Branco da Defesa Nacional (LBDN) olha apenas para o passado e, não para o futuro, como são os livros brancos de todos os países. A única alternativa considerada é pedir mais recursos (2% do PIB), sem definir bem para quê.
  2. Não existe qualquer indicação de prioridades. (Tudo é prioritário? E se o orçamento não for suficiente para tudo?)
  3. Não existe um Plano B, que considere a hipótese (altamente provável) de não ser possível aumentar o orçamento. Nessas condições, é razoável esperar que se procure eliminar coisas que agreguem pouco valor à defesa (efetivos e meios e instalações obsoletas, por exemplo) e implementar reformas para aumentar a eficácia e a eficiência do sistema, liberando recursos. A maioria dos países vêm recorrendo a esta medida nos últimos anos, premidos, que são, assim como o Brasil, por restrições orçamentárias (este foi o principal problema detectado na análise dos documentos).

O único ponto de interrogação em relação às questões “defesa para quê” e “defesa contra quem” é a questão nuclear, pois o planejamento atual parece ser incoerente com a ênfase na postura de dissuasão. Este termo foi criado no contexto da possibilidade de um conflito nuclear. Nesse aspecto, o planejamento não considera a pergunta que todo estrategista é obrigado a fazer: e se? Essa é uma questão que, embora não caiba no presente momento, provavelmente terá que ser considerada no futuro, caso a situação internacional mude de uma maneira tal que recomende repensar a decisão de abdicar desse tipo de armamento.

Um erro muito grave, relacionado à questão “defesa com quê”, é a total omissão de um dos dois essenciais instrumentos da defesa: a Base Logística de Defesa. Talvez o instrumento de defesa mais estratégico e prioritário para o Brasil neste momento. Os documentos estão direcionados apenas para o preparo das FFAA. A principal causa dessa omissão parece ser o desconhecimento, por parte dos autores dos documentos, da base conceitual que, atualmente, rege o planejamento da defesa dos países mais relevantes em termos de desenvolvimento e capacidade de defesa.

Os problemas detectados evidenciam que as pessoas que elaboraram esses documentos desconhecem essa base conceitual e adotaram um entendimento muito restrito e limitado do significado da logística de defesa. Talvez, por causa de suas experiências pessoais, majoritariamente voltadas para atividades operacionais, e de aspectos doutrinários das FFAA, que não evoluíram e se mantêm atrelados a conceitos que não abarcam a complexidade e a totalidade do problema abrangido pela logística de defesa. A base conceitual mencionada na END, contida nas descrições das capacidades de “logística”, de “mobilização” e de “desenvolvimento de tecnologias de defesa” está muito incompleta e/ou desatualizada.

Uma possível causa para esse problema pode estar no “como” estão estruturadas as instituições que cuidam da defesa. Enquanto quase todos os países, com alguma relevância econômica e militar, já reformaram suas instituições, de modo a separar as atividades de operações de combate das de logística de defesa (principalmente aquisição, P&D, inovação e de fomento industrial e de CT&I), atribuindo essas  últimas a um órgão totalmente desvinculado das FFAA e com um comando único, no Brasil as atividades de logística de defesa destinadas ao preparo estão sob a responsabilidade das FFAA e pulverizadas em quase duas dezenas de órgãos comandados por oficiais generais do mais alto escalão (4 estrelas). Como a Base Logística de Defesa é uma só, esse tipo de organização é, não só ineficiente, em função da multiplicação de órgãos com a mesma finalidade, mas também totalmente disfuncional e incapaz de cuidar do seu desenvolvimento e sustentação. Em decorrência do tipo de organização adotada, não se pode descartar, também, como possível causa para a omissão da BLD no planejamento, o fato do mesmo ter sido feito pelas FFAA.  A essas, muito naturalmente, não interessaria dividir recursos, nem poder, com outros órgãos do Estado. Reformas dessa natureza sempre tiveram que partir do Poder Político em todos os países que as implementaram.

O problema mais evidente associado à questão “defesa como”, e também o mais grave, é a falta de uma orientação política emanada dos altos escalões da República.

A causa visível é que o planejamento foi feito de baixo para cima, contrariando, não só o arcabouço teórico e conceitual aplicável, como também a experiência internacional.

Entretanto, a causa primária está na inadequação das instituições que cuidam da defesa, não só no âmbito do Ministério da Defesa (MD), mas também no mais alto escalão de poder da República: o Congresso Nacional e a Presidência.

Como consequência, pode-se afirmar, com base nas perspectivas de análise utilizadas, que esses documentos sofrem de falta de propósito e legitimidade, por não fazerem nenhuma referência à política, e não fazem muito sentido, por não atentarem para a necessidade observar os ditames do constructo da estratégia (fins políticos, caminhos, meios e premissas) na sua elaboração.

Para evitar que esse problema permaneça, seria muito desejável que existisse um conselho de alto nível para prestar assessoria direta ao Presidente da República, composto das autoridades de mais alto nível do poder legislativo e dos ministérios diretamente ligados a questões de defesa, além de profissionais com muita experiência em assuntos militares, de relações exteriores, de logística de defesa, científicos-tecnológicos e de economia, entre outros. Esse conselho também poderia dispor de uma assessoria técnica externa com capacidade para efetuar análises de custo-eficácia de alternativas para a defesa, sempre que necessário.

Da mesma forma, para que o Congresso possa vir a assumir suas responsabilidades em relação à defesa, necessitaria contar com uma assessoria técnica semelhante, altamente qualificada e independente das FFAA, para realizar análises de custo-benefício de alternativas de capacidades militares.

Um segundo problema grave encontrado, ainda sob a perspectiva de “defesa com quê”, se relaciona com os investimentos para os projetos de aquisição propostos pelas FFAA. Uma análise superficial da adequabilidade dos projetos de investimentos propostos, mostrou que eles não atendem a uma necessidade básica de defesa do país, que é um sistema de defesa aérea eficaz e crível. Esta pode ser considerado uma falha relevante no planejamento e levanta dúvidas muito pertinentes quanto à sua robustez.

Este fato recomenda que todos os projetos estratégicos propostos sejam submetidos a uma análise crítica, feita por pessoas habilitadas e que tenham uma independência em relação às FFAA. Por este motivo, este problema, que aborda definição de meios, está inserido na questão-chave “defesa como”.

Muito provavelmente o problema é decorrente da falta de uma capacidade de avaliação “a priori”, baseada em análises de custo-benefício envolvendo alternativas de sistemas de defesa para atender a situações de contingência. Essa capacidade é típica de profissionais de logística de defesa com formação nas áreas de engenharia e análise de sistemas, economia e engenharia de produção, em especial pesquisa operacional, trabalhando em conjunto com militares conhecedores de operações de combate.

Militares voltados para operações de combate, como regra, não possuem todas essas qualificações e, se trabalhando de forma isolada, acabam decidindo com base em avaliações muito subjetivas e percepções derivadas de suas experiências pessoais nas atividades que desenvolveram. Isso não é novidade e, há muito, é um problema reconhecido pela experiência internacional.

Exatamente por essas razões o Governo americano, na década de 60, promoveu profundas reformas, conduzidas por Robert McNamara no Departamento de Defesa Americano (DoD), ao introduzir o Planning-Programming-Budgeting System (PPBS), com o propósito de “forçar as Forças Armadas a terem foco nas estratégias mais amplas que elas deveriam perseguir, definir os sistemas de armas adequados a essas estratégias e levar em conta o custo total envolvido nas decisões sobre programas de aquisição, no momento em que elas fossem sendo tomadas. Adicionalmente, ao focar nas necessidades estratégicas, ele procurou contornar rivalidades que frequentemente levaram as Forças Armadas a adquirir equipamentos similares, mas redundantes, tais como aeronaves de combate para a Marinha e a Força Aérea”[2].

Portanto, seria recomendável que o planejamento fosse revisto para incluir objetivos, ações e os recursos necessários para a criação de uma competência para fazer avaliações “a priori”, com base em estudos de análise de sistemas. Esta medida é essencial para prover o Estado brasileiro de uma capacidade de “auditoria de capacidade militar”, equivalente à que já existe para efetuar “auditoria de gestão”, que é atendida pela existência do Tribunal de Contas da União (TCU).

Sem essa competência, dificilmente se poderá planejar com um mínimo de racionalidade e o Brasil não conseguirá desenvolver, a médio prazo, a capacidade militar de que precisa. Isto porque, já está comprovado que a maneira que vem sendo utilizada gera resultados muito aquém do necessário, leva a desperdícios e implica em elevados custos de oportunidade, pela omissão de capacidades que, nos momentos decisivos, acabam se mostrando essenciais para a defesa.

Em caráter emergencial, tendo em vista que os documentos já foram encaminhados ao Congresso Nacional, seria altamente desejável que esses projetos, antes de serem aprovados, fossem examinados com muita atenção, com a assessoria de profissionais que, de forma independente das FFAA, mas com informações fornecidas por elas, possam fazer esse tipo de análise. No mínimo esses projetos deveriam ser submetidos a um amplo escrutínio, que pode ser feito voluntariamente por profissionais com conhecimentos variados sobre defesa.  Suas análises, críticas e sugestões, seriam colocadas à disposição do Congresso, de forma escrita ou em audiências públicas, ou reservadas, dependendo da natureza dos assuntos tratados.

A vantagem dessa abordagem é que certamente seriam gerados muitos questionamentos pertinentes que obrigariam as FFAA a apresentarem respostas fundamentadas. Se todas as respostas forem convincentes, o custo seria muito baixo e estaria reforçada a adequabilidade do planejamento. Se, ao contrário, os questionamentos comprovarem falhas no planejamento, o benefício seria muito grande, pois se eliminaria o risco de cometer erros na alocação de parcelas significativas do orçamento para investimentos com pouca utilidade, enquanto que outros, que podem ser vitais para a defesa do país, seriam relegados ao abandono. Portanto, essa seria uma abordagem ganha-ganha, altamente recomendável e oportuna nessa fase do processo de decisão.

A análise também abordou dois temas específicos e muito relevantes: as questões da carreira civil de defesa e do orçamento de defesa.

Com relação ao primeiro, foram detectados dois problemas no planejamento. Apesar de ter sido afirmada a necessidade de criação dessa carreira, nada foi definido em relação às qualificações desejáveis para o ingresso, nem sobre as funções que lhes seriam atribuídas. Portanto, não há como avaliar se essa proposta é boa ou ruim. Entretanto, as iniciativas do MD nos últimos 15 anos, voltadas para o fomento da formação de recursos humanos para defesa, com a utilização dos Editais PRODEFESA, parecem indicar que o ministério considera que a formação ideal é na área de Ciência Política. Apesar da inegável contribuição que a Ciência Política pode dar à defesa, a experiência internacional sugere que a formação mais usual para uma carreira civil de defesa é voltada para as atividades de logística de defesa (engenharia de sistemas, aquisição, gestão de projetos e programas, teste e avaliação operacional de sistemas, estimativa de custos, gestão financeira, auditoria, controle e garantia de qualidade, entre outras). Portanto o percentual de especialistas com formação em ciência política nos quadros de especialistas civis de defesa tenderia a ser muito pequena.

Então, duas situações poderão acontecer. Ou o MD, ao se aprofundar na definição das qualificações e funções dessa carreira, vai seguir a experiência internacional e reconhecer que as qualificações mais adequadas são as relacionadas às atividades de logística de defesa, ou está realmente pensando que a formação em ciência política é a ideal.

A segunda hipótese poderia implicar na decepção de algumas centenas de brasileiros que buscaram essa qualificação e não encontrarão vagas. Entretanto, esse efeito pode ser amenizado pelo fato de que é fundamental que o Poder Político se envolva com defesa e, assim, eles poderiam prestar importante contribuição para ajudar os partidos políticos a tratarem desse assunto. Da mesma forma, muitos deles poderiam ingressar na carreira de assessores legislativos no Congresso para assessorar os parlamentares nesses assuntos.

A primeira hipótese, entretanto, poderá ter consequências mais graves, pois a maioria dos especialistas civis de defesa seriam da área de humanas e não teriam condições de desempenhar funções de logística de defesa.

De qualquer forma fica a dúvida: como e onde o MD pretende utilizar os especialistas que comporiam a carreira civil de defesa?

Com relação ao orçamento de defesa, os documentos propõem um gasto atrelado ao Produto Interno Bruto no valor de 2%. Esse número vem sendo repetido por todos os ministros da defesa nos últimos 12 anos.

Entretanto, nenhum desses ministros, o atual e os outros, ao longo desses 12 anos, preparou um Plano B, para a hipótese desse pleito não poder ser atendido, e existem muitas razões objetivas para que não seja aprovado. Senão, vejamos:

  1. O país vai ter que entrar em um longo período de recuperação fiscal depois dos elevados gastos com a pandemia da COVID-19;
  2. A recuperação econômica provavelmente exigirá o uso de fortes investimentos do Estado em obras de infraestrutura;
  3. A pandemia revelou a situação de grande fragilidade de mais de 50 milhões de brasileiros, o que possivelmente terá que levar a algum programa mitigador, do tipo renda mínima, que exigirá recursos muito maiores que os que têm sido usados para o bolsa família; e
  4. Existe uma limitação constitucional que define um teto de gastos.

Outra questão em aberto é saber se esse valor de 2% do PIB será suficiente para viabilizar o planejamento. Mas, os documentos não apresentam nenhum orçamento, nem cronograma de execução. Portanto, não pode nem mesmo ser considerado como um planejamento de fato. Como avaliar e aprovar algo que não está orçado?

Ora, é sabido que a distribuição de gastos do Ministério da defesa tem elevada concentração em pessoal e baixíssimos percentuais (menos de 10%) aplicados em investimentos. Mas, o pior é que a maioria dos investimentos são feitos no exterior, o que compromete ainda mais a capacidade do país em desenvolver e sustentar sua Base Logística de Defesa. Portanto, uma estratégia óbvia para preparar um Plano B seria enxugar tudo o que não acrescenta valor à defesa e efetuar a reformas similares às que vêm sendo feitas pela maioria dos países, já mencionadas acima, que visem a redução de redundâncias e ineficiências no sistema. Essas medidas certamente liberariam recursos significativos para investimentos em desenvolvimentos, aquisição e manutenção de produtos e sistemas de defesa na BLD nacional.

A análise mostrou que as instituições de defesa do Brasil estão muito defasadas, do ponto de vista organizacional e de processos, em relação às melhores práticas internacionais e ao que é preconizado pelo arcabouço conceitual relacionado a essa questão.

O sistema atual, por um lado, é cheio de redundâncias, não só desnecessárias, mas principalmente geradoras de muita ineficiência e ineficácia. Por outro lado, carece de uma estrutura capaz de desenvolver, de uma maneira profissional, atividades fundamentais para a defesa, tais como a mencionada avaliação “a priori” de capacidades militares e de logística de defesa. Esta última, entendida no seu sentido mais amplo, que exige que o Estado cuide do desenvolvimento e sustentação de empresas realmente estratégicas para a defesa e para a capacitação industrial do país em produtos de alto valor agregado, que dependem de altas e médias-altas tecnologias.

Nessas condições, o recomendável, antes de se propor qualquer aumento de orçamento, seria rever esses documentos e direcioná-los para promover profundas modificações nesse sistema, semelhantes às que quase todos os países, com alguma semelhança ao Brasil, já fizeram.

[1] Ver documento completo

[2] Referência no documento completo