De Volta ao Centro da Arena
De Volta ao Centro da Arena:
– Publicado no Journal of Democracy em Português, Volume 9 – Número 2, Novembro de 2020, pp. 1-29
Causas e Consequências do Papel Político dos Militares sob Bolsonaro*
Octavio Amorim Neto, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, campus de San Diego (1998), é professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE), da Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro. Foi professor pesquisador do antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) em 1998-2001. É autor de De Dutra a Lula: A Condução e os Determinantes da Política Externa Brasileira (Campus, 2011) e de Presidencialismo e Governabilidade nas Américas (FGV Editora, 2006). Seus trabalhos já foram agraciados com prêmios da Associação Brasileira de Ciência Política e da Associação Americana de Ciência Política.
Igor Acácio é doutorando em ciência política pela Universidade da Califórnia, campus de Riverside, e mestre na mesma área pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). Graduou-se em relações internacionais pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, é pesquisador visitante no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas, e bolsista do Institute on Global Conflict and Cooperation, da Universidade da Califórnia. É coautor do Atlas da Política de Defesa Brasileira (2017). Sua produção acadêmica recente apareceu em Democratization, Journal of Democracy e Oxford Research Encyclopedia of Politics.
*Os autores agradecem os valiosos comentários do General Francisco Mamede Brito Filho (da reserva) e de Sergio Fausto, Júlio César Cossio Rodriguez, Bernardo Sorj e Eduardo Viola a uma versão anterior do artigo.
1 Introdução
Algumas características marcantes da política brasileira ao longo do século 20 que, até há pouco, se acreditava serem coisa do passado retornaram à vida cotidiana do país. É este certamente o caso do retorno dos militares ao centro da arena política. Artigos de imprensa reportam que há mais de 6.000 militares com cargos no governo, mais de 3.000 deles na ativa.[i]
O presidente democraticamente eleito em 2018 é um capitão da reserva do Exército, sendo boa parte de seus ministérios chefiada por oficiais das Forças Armadas. Fala-se em militarização da política. Observadores nacionais e internacionais têm prestado muita atenção ao que vem ocorrendo no Brasil, constatando que o papel político desempenhado pelos militares se soma ao recente emprego em missões de segurança pública. Trata-se da nova militarização da política na América Latina, já havendo quem chame a região de “terra das democracias militarizadas”.[ii]
O Brasil pode ser considerado uma democracia militarizada? Se sim, o que explica esse recente protagonismo de militares na política brasileira? E quais seriam suas consequências? Essas são as questões abordadas neste ensaio.
Argumentamos que o atual processo de militarização da democracia brasileira sob o governo Bolsonaro se explica por uma análise que combine características-chave do sistema político com as relações civis-militares. Em particular, as causas do fenômeno em tela possuem suas raízes nas interações entre o presidencialismo multipartidário extremado e o estamento militar. Um típico padrão de formação de governo estimulado por aquele arranjo político e as motivações de cunho material e ideacional das Forças Armadas dão conta, em boa medida, do que está acontecendo desde 1º de janeiro de 2019. É o que procuramos mostrar na segunda e terceira seções deste artigo. Na seção seguinte, identificamos os retrocessos gerados pelo retorno dos militares ao centro da arena política. A quinta e última seção apresenta propostas que possam, concomitantemente, fortalecer o controle civil sobre os militares e a Defesa Nacional.
2 A participação política dos militares sob o governo Bolsonaro
Convém, em primeiro lugar, diferenciar o atual protagonismo dos militares do que ocorreu sob o regime autoritário de 1964-1985. Ao contrário do golpe que encerrara a primeira experiência democrática brasileira, o retorno dos militares ao centro da arena política, hoje em dia, se deu por convite de um líder democraticamente eleito.[iii] A primeira consideração a ser feita sobre tal retorno diz respeito a um aspecto apontado como preocupante e deletério para o controle democrático sobre as Forças Armadas, a influência militar. Nas palavras de Samuel Huntington, na obra fundadora do estudo das relações civis-militares: “A influência militar aumenta se membros do oficialato assumem posições de autoridade em estruturas de poder não militares”.[iv]
O Brasil de Jair Bolsonaro é um caso sui generis, um experimento raro no conjunto dos regimes democráticos contemporâneos, no que diz respeito à participação dos militares na política. Em 7 de agosto de 2020, quando da redação deste artigo, o Brasil tinha 9 ministros que são ou foram oficiais de carreira das Forças Armadas, correspondendo a 39,1% do gabinete presidencial. Esse número é certamente o mais alto do atual regime democrático (isto é, o período entre 1985 e 2020). Neste período, o máximo a que se chegou foi 29% de ministros militares em 1994, sob o governo de Itamar Franco, o qual, em precária situação política após a traumática destituição do primeiro presidente democraticamente eleito após o regime militar, fiou-se no apoio da caserna para garantir o fim de seu mandato.[v] A seguir, esboçamos um arcabouço teórico para compreender o processo de militarização de uma democracia ainda não plenamente consolidada.
A literatura sobre relações civis-militares identifica esferas de autonomia militar ao longo do que Pion-Berlin chama de continuum político-militar.[vi] A supremacia civil é ideal em todas as esferas, já que, do ponto de vista da teoria democrática, os militares devem ser instrumentos armados de governantes livremente eleitos.[vii] Todavia, certos graus de autonomia são mais permissíveis do que outros. Por exemplo, as atividades que dizem respeito às tarefas estritamente profissionais das Forças Armadas podem ser delegadas sem maiores sobressaltos. Há quem argumente que tal delegação fortalece o profissionalismo e reduz o potencial de intervenção militar na política.[viii]
Por outro lado, a condução das linhas mestras da política de defesa, os orçamentos militares e os principais projetos das Forças devem ser responsabilidade dos civis. Seguindo essa lógica, é ainda menos recomendável que atividades governamentais não eminentemente militares sejam empreendidas por membros das Forças Armadas. Portanto, nomear generais e outros oficiais, mesmo que da reserva, para tais posições viola o princípio do controle civil sobre as Forças Armadas. Uma objeção a esse argumento, muito comumente feita hoje em dia no Brasil, sustenta que aqueles militares exercem tais funções a convite de um governo democraticamente constituído e consideram-no uma missão. Entretanto, em recente artigo, o General Francisco Mamede Brito Filho (da reserva), contemporâneo dos oficiais do atual Alto Comando do Exército Brasileiro, afirmou categoricamente que missões somente são aquelas exercidas por militares em funções de natureza militar, de sorte que “um militar da ativa que integra o governo dizendo-se cumpridor de uma missão encerra uma mensagem institucional flagrantemente distorcida”.[ix]
Dito de maneira enfática, por mais que militares da ativa insistam que as Forças Armadas institucionais não se confundem com o governo e que os militares que servem ao Executivo estão lá por conta própria (isto é, não por ordem do Alto Comando das Forças), o fato é que – com vários generais, alguns da ativa, ocupando postos ministeriais eminentemente civis e milhares de militares atuando nos escalões inferiores do Poder Executivo, em funções também civis – estabeleceu-se uma ambiguidade enorme em relação ao lugar das Forças Armadas na ordem política, ambiguidade que enfraquece o controle civil sobre os militares, tornando muito menos transparente a política do regime democrático brasileiro.
Um regime democrático implica não apenas a plena subordinação dos militares à autoridade da Constituição e dos governos, mas também que os militares tenham seu poder político circunscrito à sua área de atuação profissional, isto é, à defesa nacional. Quando o poder dos militares se expande para além dessa área, a capacidade que os civis têm de controlá-los se reduz. Além disso, colocar os militares no centro da arena política significa colocar representantes de uma organização opaca e radicalmente vertical no centro de um regime político que se fundamenta justamente no oposto, isto é, na transparência e em relações horizontais. É justamente por possuírem essas duas características que o Poder Legislativo e as agremiações partidárias são as instituições basilares de uma democracia. Faz sentido que, em um regime democrático, as opiniões do Alto Comando do Exército a respeito de decisões não relacionadas à defesa nacional tomadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional sejam um fator-chave da dinâmica política do país, como se viu ao longo do primeiro semestre de 2020 no Brasil? Não faz. Isso é uma distorção do processo político democrático.
Por último, outro argumento favorável à presença dos militares no governo assevera que estes recebem treinamento em administração pública de alto nível, devendo, portanto, ser considerados servidores públicos como quaisquer outros e podendo a Presidência da República dispor deles como bem entender. Ocorre que os militares de carreira não são simples burocratas, são profissionais treinados para utilizar o máximo de força para infligir dano a um inimigo sob um rígido sistema baseado em hierarquia e disciplina.[x] Para obter absoluta obediência, as organizações militares são instituições totais; sua doutrina, processos e cultura organizacional dominam todos os aspectos da vida pública e privada de seus membros, de modo que, uma vez oficial, sempre oficial.[xi] Assim sendo, um ex-general, general é. Um ex-tenente, tenente é. Para aqueles ainda não persuadidos por nossos argumentos, vale a pena ler a definição de carreira militar dada pelo Comando do Exército Brasileiro:
“A carreira militar não é uma atividade inespecífica e descartável, um simples emprego, uma ocupação, mas um ofício absorvente e exclusivista, que nos condiciona e autolimita até o fim. Ela não nos exige as horas de trabalho da lei, mas todas as horas da vida, nos impondo também nossos destinos. A farda não é uma veste, que se despe com facilidade e até com indiferença, mas uma outra pele, que adere à própria alma, irreversivelmente para sempre. (SGEX, 2002, capítulo 1).”[xii]
3 Explicando a militarização de uma democracia em consolidação
Nosso argumento combina hipóteses advindas tanto da literatura sobre as instituições políticas brasileiras e de outras nações como da que se dedica ao estudo das relações civis-militares. Sustentamos que o sistema político brasileiro moldado pela Constituição de 1988, conquanto tenha propiciado a mais longa experiência democrática de nossa história, tem sérias mazelas que facilitaram o retorno dos militares à política.
A partir de 1994, o Brasil passou a eleger as legislaturas mais fragmentadas da história da democracia desde o começo do século 20.[xiii] As eleições de 2018 produziram uma Câmara dos Deputados com 30 siglas e um número efetivo de partidos igual a 16,4. A combinação de um sistema de governo presidencial que confere amplos poderes ao chefe de Estado com alta fragmentação legislativa, dando origem ao nosso presidencialismo de coalizão, gera consequências díspares, pois é uma fórmula governativa muito ampla e vaga, cujos elementos constitutivos podem ser permutados de várias maneiras.[xiv]. O altíssimo nível de fragmentação legislativa que o Brasil atingiu tornou a formação e a manutenção de coalizões muito mais difícil e, ao mesmo tempo, gerou incentivos mais fortes para que os presidentes agissem unilateralmente.
Por um lado, o arranjo institucional brasileiro estimula a formação de coalizões governativas fragmentadas e heterogêneas, as quais podem ser muito custosas do ponto de vista orçamentário e exigir o recurso a métodos heterodoxos ou escusos para serem mantidas.[xv] Por outro, a alta fragmentação implica também que o tamanho legislativo do partido do presidente tende a ser pequeno, o que, por sua vez, favorece a formação de governos minoritários no Poder Legislativo[xvi] e com um número relativamente alto de ministros apartidários.[xvii] Presidentes extremistas e afiliados a partidos pequenos são particularmente propensos a formar governos minoritários e a nomear ministros apartidários.[xviii] Por último, governos minoritários estão associados ao encerramento prematuro de mandatos presidenciais na América Latina.[xix]
As verificações empíricas acima citadas nos levam a crer que o presidencialismo multipartidário extremado tenha contribuído – indiretamente – para a militarização de vários modos. Como?
Em primeiro lugar, entre 2003 e 2018, o Brasil foi regido por coalizões amplamente fragmentadas e heterogêneas que acabaram associadas a grandes escândalos de corrupção (mormente o mensalão e o petrolão) e, a partir de 2015, a graves crises econômicas geradas pelo descontrole do gasto público e a uma escalada nos índices de violência. Essa tríplice combinação explosiva, por seu turno, deslegitimou os grandes partidos.[xx] De maneira complementar, o agravamento dos problemas de segurança pública passou a gerar um clamor por lei e ordem e uma política de “mão dura” no combate à criminalidade, o que, por sua vez, aumentou o apoio popular à militarização da segurança pública, processo que já vinha ocorrendo há algum tempo por meio da expansão das operações do tipo Garantia da Lei e a da Ordem.[xxi]
Com o benefício da sabedoria posterior aos fatos, está claro que Bolsonaro percebeu e atendeu, durante a campanha presidencial de 2018, todos os anseios – da população e de importantes setores das elites – por ética na política, pela estabilização econômica por meio da redução dos gastos públicos e pela redução da violência. Além disso, o candidato do Partido Social Liberal e ex-capitão do Exército prometeu, explicitamente, que os militares iriam a ajudá-lo a governar e que nomearia um oficial para chefiar o Ministério da Defesa. Todavia, apesar de ter sido eleito com 46,03% de votos no primeiro turno e 55,13% no segundo, seu partido passou a ter apenas 10,14% das cadeiras da Câmara e 4,94% do Senado. Bolsonaro, um presidente extremista filiado a um partido relativamente pequeno no Congresso, estava fadado a formar um governo minoritário e a nomear ministros apartidários, tal qual sugerido pela literatura acadêmica discutida acima. Como bom leitor da política brasileira, o presidente também se mostrou, desde o começo do seu mandato, plenamente ciente de que este corria sérios riscos de encerramento prematuro. Em suma, a partir do fim do pleito presidencial em 28 de outubro de 2018, estavam dadas as condições necessárias, mas jamais suficientes, para a militarização do novo governo. A questão, doravante, é discutir as condições suficientes.
Assim que vestiu a faixa presidencial, Bolsonaro passou a envidar claros esforços para associar as Forças Armadas ao seu governo, de modo a alcançar três objetivos: dissuadir o Congresso de destituí-lo; ter quadros leais à sua liderança; e beneficiar-se da boa imagem que as Forças Armadas têm aos olhos da opinião pública, lentamente recuperada desde o fim do regime militar. Os esforços se traduziram em um conjunto de sete medidas: (1) frequentes visitas do presidente a cerimônias e unidades militares, (2) nomeação de vários ministros de origem militar, (3) designação de milhares de oficiais para cargos de confiança na administração federal, (4) contribuição das Forças Armadas à reforma previdenciária inferior à de outros setores da sociedade, (5) reforma da carreira militar acompanhada da concessão de amplo aumento salarial, (6) emissão de um dispositivo legal que permite a militares da reserva atuarem no setor público com aumento de soldo de 30%, e (7) conjunto de decisões que permitiu elevar o orçamento de investimento da Defesa a partir de 2020 e garantiu também que os recursos orçados não serão contingenciados.[xxii] Isso inclui a preservação, em um contexto de pandemia, dos investimentos em projetos estratégicos das Forças Armadas, como o submarino à propulsão nuclear, o avião cargueiro KC-390 e o projeto da viatura blindada Guarani.[xxiii]
Trata-se de um pacote muito coerente e, ao que tudo indica, eficaz. As evidências de eficácia se encontram, por exemplo, na timidez por parte da oposição e da liderança do Congresso em abrir um processo de suspensão do mandato presidencial apesar de todas as ameaças de Bolsonaro ao próprio Poder Legislativo e da falta de decoro presidencial; na absoluta lealdade do Ministério da Saúde sob a gestão do General Pazuello às diretrizes negacionistas da pandemia emanadas do presidente da República; e na enorme relutância que as Forças Armadas institucionais têm demonstrado em publicamente repudiar os atos de Bolsonaro que atentam contra a Constituição e as instituições democráticas.
Cabe agora analisar a adesão dos militares à administração Bolsonaro.
4 Por que os militares aderiram a Bolsonaro?
O envolvimento de militares na política só ocorre quando há uma oportunidade aberta pelo sistema político e um motivo para que os militares deixem os quartéis.[xxiv] Os fatores ligados ao sistema político, identificados na seção anterior, são apenas condições permissivas, as quais já estavam presentes antes de 2019. Assim, quais são as motivações dos militares para se envolverem em um empreendimento tão arriscado?
A presença massiva de militares no governo é arriscada para as Forças Armadas por três razões. Primeira, porque os militares da ativa passam a se preocupar muito menos com sua função precípua, a defesa nacional. Segunda, porque o eventual fracasso do governo Bolsonaro poderá afetar a boa imagem que as Forças Armadas têm aos olhos da população. Terceira, porque associar-se ou deixar-se associar a um governo que venha a fracassar poderá criar um fosso profundo entre as Forças Armadas e as elites civis, o que, por sua vez, também não é bom para a defesa nacional. Dados os riscos, o que levou os militares a se aproximarem de Bolsonaro?
Ao contrário dos partidos políticos, as Forças Armadas não têm programas aprovados em convenções públicas, não se sabendo, portanto, o peso relativo das diferentes tendências internas, uma vez que, por razão de ofício, a cultura das organizações militares é marcada pelo sigilo e pela opacidade. Ainda assim, é plausível tratar as corporações castrenses como organizações com cultura própria, de tradição conservadora, e que buscam sua sobrevivência e a preservação de seus interesses de forma relativamente coerente. É por esse prisma que elas respondem às oportunidades, espaços e brechas geradas pelo sistema político.[xxv] Além disso, há que se considerar os fatores que moldam as preferências e o comportamento dos militares. São três: estruturais, ideacionais e materiais.
Os fatores estruturais têm a ver com o ambiente de segurança e do tipo de ameaças – internas e externas – enfrentadas por um país. Países com ameaças externas e ausência de ameaças internas tendem a ter Forças Armadas que se dedicam exclusivamente ao preparo para a guerra. No Brasil, uma relativa falta de ameaças externas e uma alta percepção de ameaças internas geram Forças Armadas com orientação estruturalmente “internalista”,[xxvi] constantemente se envolvendo na política nacional e executando missões de segurança interna e desenvolvimento nacional.[xxvii] Nos últimos anos, o aumento das tensões na América do Sul devido à crise na Venezuela e o acirramento da rivalidade entre China e Estados Unidos no plano global deveriam orientar as Forças Armadas brasileiras a dedicar-se primordialmente ao seu potencial emprego na defesa da integridade territorial. Todavia, não é o que tem acontecido. Pelo contrário. Afinal, milhares de militares têm se encarregado de atividades outras, não ligadas à defesa nacional, e em toda sorte de missões de cunho internalista, a começar pelo controle do Ministério da Saúde no meio de uma pandemia. Fatores estruturais, portanto, não logram explicar a conduta atual das Forças Armadas brasileiras.
E a dimensão ideacional? A cultura organizacional das Forças Armadas – suas ideias, crenças, atitudes e a percepção que têm do seu papel na sociedade – é um terreno fértil para explicarmos o comportamento político dos militares. Os militares brasileiros, para além de terem governado o Brasil em um dos mais longevos regimes militares da história latino-americana, frequentemente intervieram na política doméstica ao longo do século 20, sobretudo em momentos de instabilidade institucional, resolvendo-os, em última instância, com golpes. Não à toa, ao longo da história republicana, os militares sempre se viram como os guardiões morais da nação. Trata-se do chamado salvacionismo militar. Assim, quando os militares veem seu prestígio ameaçado, passam à ação política para salvaguardar sua imagem de guardiões da nação.
Foi o que aconteceu sob o governo de Dilma Rousseff, o qual, paralelamente à delegação de diversas tarefas da administração pública às Forças Armadas, teve de lidar com diversas fricções com os militares no campo simbólico. Por exemplo, em 2014, um pouco antes de 31 de março, a então presidente ordenou ao Ministério da Defesa que não permitisse, nos quartéis, a comemoração do golpe de 1964.[xxviii] Porém, os fatos que mais despertaram “o centauro da República” foram o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014, e a perda do status ministerial do Gabinete de Segurança Institucional no segundo semestre de 2015.
A Comissão Nacional da Verdade, ao não poder acusar legalmente aqueles que supunha haverem violado direitos humanos durante o regime militar, optou por nomear, de modo a envergonhar, os supostos perpetradores.[xxix] A lista de nomes gerou grande comoção no seio da caserna, tendo os clubes militares se manifestado veementemente. O General Sérgio Etchegoyen, uma importante liderança do Exército, processou a Comissão da Verdade por haver incluído o nome do seu pai na lista, pedido que foi negado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região em junho de 2020.[xxx]
Quanto à perda do status ministerial do GSI, decisão tomada por Dilma Rousseff, significou que, pela primeira vez na história republicana, não mais havia sequer um militar no primeiro escalão do Executivo Federal. Isso gerou um forte sentimento de desprestígio por parte das Forças Armadas. Não à toa, um dos primeiros atos do governo Temer foi justamente o de restituir o referido status e nomear o General Sérgio Etchegoyen para chefiar o GSI. Bolsonaro capitalizou esse sentimento de desprestígio, trazendo os militares para o centro decisório de seu governo. Seus ministros palacianos são militares, sua articulação política é comandada por militares e pastas estratégicas de ação governamental, como Saúde, Minas e Energia, Infraestrutura, Ciência e Tecnologia, estão todas nas mãos de membros ou ex-membros das Forças Armadas.
De maneira complementar, o fracasso econômico do governo Dilma Rousseff, a perda de credibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores com a revelação de gigantescos esquemas de corrupção pela Operação Lava Jato e o clima de polarização gerado pelo controverso processo de destituição da então presidente no primeiro semestre de 2016 fizeram acordar, de um longo sono, o anticomunismo, a ideologia distintiva que faz parte das Forças Armadas brasileiras desde 1935.[xxxi] Novamente de forma hábil, Bolsonaro soube explorar o amplo veio anticomunista dormente no subconsciente dos militares brasileiros, vestindo-o de antipetismo, de modo a adequá-lo às condições do século 21.
Por último, no tocante aos fatores materiais, estes também podem explicar o comportamento dos militares brasileiros.[xxxii] A partir do governo Fernando Henrique Cardoso, a corporação castrense passou a queixar-se da precarização da atividade militar, enquanto aquele presidente implementava radicais cortes nos valores recebidos pelo funcionalismo público, embora a Defesa fosse constantemente uma das maiores rubricas de gastos públicos tanto durante o governo FHC como o de seu sucessor, Lula.[xxxiii] É plausível supor que a insatisfação militar estimulou os oficiais a aderirem a Bolsonaro em busca de vantagens materiais e apoio a projetos das Forças. De fato, satisfazer as demandas econômicas da caserna é uma estratégia bastante utilizada por regimes políticos que de seu apoio dependem.[xxxiv] Porém, não podemos deixar de registrar que as Forças Armadas receberam consideráveis benefícios materiais sob o segundo mandato de Lula. Foram diversos os projetos estratégicos das Forças Armadas apoiados pela administração petista – como a compra dos caças Gripen e os acordos de cooperação para a construção do submarino à propulsão nuclear, assim como se deram aumentos substanciais de salário tanto para militares da ativa quanto inativos, algo demandado desde a década de 1990.[xxxv]
Para além das questões orçamentárias, os militares podem racionalmente tentar proteger seus interesses corporativos por meio do controle sobre a formulação da política de defesa. No caso brasileiro, alguns setores das Forças Armadas aceitaram com muita relutância a criação do Ministério da Defesa durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.[xxxvi] Outros setores passaram a ser extremamente críticos ao ex-presidente por conta de questões salariais e pelo fato de FHC não os ter consultado a respeito de alguns temas atinentes à defesa nacional. E até o General Joaquim Silva e Luna assumir, no governo Michel Temer, o Ministério em fevereiro de 2018, havia sido constante a crítica, por parte dos militares, de que os civis que chefiavam a Defesa não eram especialistas no assunto.
Convém lembrar que, a partir da década de 1990, houve avanços importantes no controle civil das Forças Armadas com a criação do Ministério da Defesa (1999) e a Lei da Nova Defesa (2010). De forma incremental, os civis passaram a se envolver na elaboração da política de defesa. Entre janeiro de 1999 e fevereiro de 2018, todos os responsáveis pela pasta foram civis. O Livro Branco de Defesa Nacional de 2012, último documento para o qual há dados publicados sobre sua elaboração, contou com 66,7% de civis entre seus autores.[xxxvii] Apesar de tais avanços, uma parte considerável da formulação da política de defesa continuou nas mãos dos militares. Ou seja, mesmo em seu melhor momento, o Brasil ainda tinha muito a fazer para alcançar vizinhos como Argentina ou Chile em matéria de controle civil.[xxxviii]
Em suma, o que realmente motivou politicamente os militares a aderir ao governo Bolsonaro foi um conjunto de fatores de natureza ideacional e material. Bolsonaro, um ex-capitão do Exército tido pelo ex-presidente Ernesto Geisel como um “mau militar”[xxxix], sempre foi o representante “sindical” das Forças Armadas durante seus 28 anos como parlamentar, lutando por seus interesses salariais e corporativos. Como presidente, restaurou o lugar central que os militares possuíram na política brasileira entre 1889 e 1985. Bolsonaro integrou os militares ao seu governo apelando para interesses materiais e para o salvacionismo e o anticomunismo latentes nas Forças Armadas, em particular no Exército.
4 As consequências do novo protagonismo militar
As relações civis-militares são peça-chave de qualquer democracia.[xl] O controle sobre as Forças Armadas e, por conseguinte, a subordinação do poder militar aos poderes democraticamente eleitos são condições necessárias para a consolidação democrática.[xli] Samuel Huntington, autor de uma obra traduzida e louvada pelos militares brasileiros, propôs um esquema teórico cujo horizonte normativo recomenda manter as Forças Armadas fora da política, canalizando sua inteira atenção para a defesa nacional. As autoridades democraticamente eleitas governariam sem influência militar desde que delegassem a condução dos assuntos militares aos profissionais fardados.[xlii] No Brasil, desde a publicação da obra de Alfred Stepan, não se deveria mais acreditar nesse tipo de delegação, a qual gera uma separação estanque das esferas civis e militar. O profissionalismo militar, no Brasil e em vários países não investigados por Huntington, não afastou a caserna da política. Muito pelo contrário, aproximou-as.[xliii] Hoje em dia, há, novamente, potenciais retrocessos na seara das relações civis-militares advindos do renascido protagonismo político castrense. A seguir, descrevemos os três principais.
Como já mencionado acima, a partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar no Brasil no sentido de se estabelecer a supremacia civil sobre os militares, em virtude (i) da criação do Ministério da Defesa, em 1999, e da publicação da Estratégia Nacional de Defesa, em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (ii) do início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (iii) da promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (iv) da publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis. Esses fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional.
O Brasil, ainda que lenta e tardiamente, avançava no que Narcís Serra, acadêmico catalão e respeitado ministro da Defesa da Espanha entre 1982 e 1991, chamou de “transição militar”, a qual ocorre concomitantemente à transição política para a democracia. As transições militares têm três etapas. A primeira é evitar golpes de Estado. A segunda é remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia. A última é o estabelecimento da supremacia civil, definida “… como a capacidade de um Governo civil democraticamente eleito de levar a cabo uma política geral sem intromissão por parte dos militares, definir as metas e a organização geral da defesa nacional, formular e levar a cabo uma política de defesa, e supervisionar a aplicação da política militar”.[xliv] Até há pouco, o Brasil se encontrava na segunda e ensaiava ingressar na última etapa.
Dito isto, o primeiro retrocesso decorrente do padrão de relacionamento engendrado por Bolsonaro com as Forças Armadas é óbvio: enquanto permanecer alta a presença dos militares no governo, a ideia de estabelecer a supremacia civil está suspensa.
Segundo retrocesso: estamos correndo o risco de voltar à primeira etapa da transição militar, pois, no primeiro semestre de 2020, a agenda política brasileira foi marcada por um intenso debate em torno da possibilidade de um golpe militar ou de uma extremamente controversa intervenção das Forças Armadas, ao abrigo do Artigo 142 da Carta Magna, nos conflitos entre o Executivo e o Supremo Tribunal Federal.
Terceiro retrocesso: as tendências recentes do sistema internacional, com crescentes tensões dentro e fora do entorno estratégico brasileiro, podem encontrar o país sem consenso social e político para canalizar recursos para os projetos das Forças Armadas. Tais projetos custam enormes somas de dinheiro, podendo levar um bom tempo para serem concretizados. Portanto, sem aquele consenso, correm alto risco de ou serem interrompidos ou de minguar por conta de orçamentos reduzidos. Além disso, registre-se que, em paralelo ao recente protagonismo militar na política, há também a extensa delegação da condução da política de defesa às Forças Armadas sem subordinação aos civis. Tal delegação também afeta negativamente a Defesa Nacional, uma vez que, sem civis a ditar as prioridades para a Defesa e sem que a sociedade saiba o que quer das Forças, qualquer iniciativa em prol da obtenção de recursos e de apoio institucional por parte dos militares, ainda que legítima, será vista com suspeição por vários setores da classe política e da sociedade civil, como está acontecendo no segundo semestre de 2020, com duras críticas ao substancial aumento das verbas do Ministério da Defesa na proposta do orçamento federal de 2021 enviada pelo Executivo ao Congresso.[xlv] Dessa maneira, o orçamento do Ministério da Defesa irá de um desequilíbrio a outro. Antes de 2019, os investimentos em defesa não estavam sintonizados com as dimensões, os interesses e as responsabilidades do Brasil – foram insuficientes e ineficazes. Doravante, não estarão com a triste realidade social e econômica do país após a pandemia – são demasiados e ineficazes também, uma vez que grande parte dos recursos continuará a ser empenhada no pagamento de soldos e aposentadorias, como mostra o editorial do jornal O Globo acima citado.
No médio prazo, a combinação de controle da política de defesa pelas Forças Armadas com a suspeição civil poderá levar ao malogro dos projetos de modernização, aumentando a vulnerabilidade do Brasil no sistema internacional em um momento em que a geopolítica global está mudando aceleradamente.
5 Propostas de mudança
O que fazer para evitar a consumação dos três retrocessos?
Primeiro, é fundamental a aprovação da proposta do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, de proibir militares da ativa de servir no governo federal em cargos não afetos à defesa nacional.[xlvi] Se militares desejam servir em cargos civis da Administração Pública federal, a solução é relativamente simples: presta-se concurso público ou aceita-se a nomeação mediante passagem à reserva. Não se retorna à tropa. Isso, aliás, seria coerente com as reformas profissionais engendradas pelo Marechal Castello Branco, as quais visavam pôr fim ao estadismo militar, com oficiais que concorriam a mandatos e ocupavam cargos públicos para retornar à caserna à espera de uma nova função. A proposta de Rodrigo Maia reduzirá sobremaneira a ambiguidade decorrente da presença de tantos oficiais em postos civis da administração federal como se observa hoje.
A segunda sugestão foi dada pelo historiador José Murilo de Carvalho: eliminar cinco palavras – “à garantia dos poderes constitucionais” – do Artigo 142 da Constituição, em que se lê que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. A remoção daquelas cinco palavras acabaria com divergências sobre a interpretação do papel constitucional das Forças Armadas, divergências que, no primeiro semestre de 2020, nos fizeram regressar à primeira etapa da transição militar descrita por Narcís Serra, como referido acima.[xlvii]
Há outras três possibilidades de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional.
Na Estratégia Nacional de Defesa, publicação oficial do Ministério da Defesa de 2008, havia a seguinte promessa: “O Ministério da Defesa realizará estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se em uma força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.[xlviii]
Passados doze anos, o país dos concursos públicos e dos “concurseiros” ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa. Estima-se que seriam necessárias aproximadamente cem vagas para a criação do quadro. Não é por falta de recursos que não foi criado. Também não faltam excelentes candidatos para as vagas. O Brasil possui massa crítica para discutir a Defesa Nacional e as Forças Armadas, simbolizada, por exemplo, pela existência de uma associação profissional que se dedica ao tema, a Associação Brasileira de Estudos da Defesa (ABED). O país produz, anualmente, centenas de doutores em Administração Pública, Ciência Política, Direito, Economia, História e Relações Internacionais que poderiam concorrer aos postos de especialista civil em Defesa. Assim, com um simples projeto de lei, um novo presidente de origem civil poderia realizar aquele concurso. No longo prazo, os especialistas civis permitiriam democratizar as relações civis-militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa – por retirar dos militares o monopólio sobre o conhecimento e as informações a respeito de tais assuntos. Nossos vizinhos argentinos e chilenos já passaram por esse processo há tempos. De forma correlata, se queremos melhorar a qualidade do debate legislativo sobre Defesa Nacional, é necessário realizar mais concursos para o Corpo Permanente de Consultores Legislativos das Casas do Congresso. Tais profissionais – especialistas em Defesa e Forças Armadas – são vitais para informar os parlamentares sobre esses temas.
Haverá certamente muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente preenchido por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje. Para aplacar a resistência, aqui vai a terceira sugestão: um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados (aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico com os foguetes do projeto Astros 2020; e as despesas referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron).
Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social no pós-pandemia, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam concentrar-se em suas funções precípuas. Um futuro presidente de origem civil deverá ter vontade e capacidade de cortar gastos orçamentários destinados a atividades rentistas para financiar os investimentos em Defesa e não cortar gastos sociais, como tem feito o governo Bolsonaro.
A última sugestão é prestar atenção a uma recente afirmação de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa: “Ao poder político cabe definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, a estrutura e os meios das nossas Forças Armadas. Mas ele, o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas ou debates e por voto simbólico”.[xlix] Do ponto de vista prático, isso significa que os líderes do Congresso deverão iniciar uma vigorosa discussão sobre a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, de modo a imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional.
Dito isso, cumpre fazer um alerta: é absolutamente vital que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. É, repita-se, necessário um engajamento intenso do Congresso e das lideranças partidárias nos debates sobre o papel das Forças Armadas. Raul Jungmann, em outro artigo de opinião, afirma que discutir o orçamento da Defesa é fútil se a sociedade brasileira não debater o que quer de seus soldados.[l] Queremos que os militares atuem como uma gendarmaria para suprir as deficiências das polícias militares estaduais? Queremos que os militares sejam empregados sob ordens governamentais para solucionar os mais diversos problemas oriundos das nossas limitadas capacidades estatais?
Parece-nos aceitável que, episodicamente, os militares sejam solicitados, como na pandemia de Covid-19, a executar tarefas de apoio logístico, distribuição de suprimentos e montagem de hospitais de campanha.[li] Ou, como sugere o sociólogo Simon Schwartzman, devemos ter um modelo híbrido, sob o qual os militares estariam permanentemente envolvidos em funções eminentemente civis?[lii] Ou ainda, queremos Forças Armadas preparadas, aprestadas e equipadas para realizar sua função precípua de defesa nacional, permitindo que uma das dez maiores economia do mundo tenha poder militar compatível com sua estatura geopolítica?
A sociedade brasileira, por meio dos seus representantes no Executivo e Legislativo federais, tem relutado em decidir as prioridades da defesa nacional e o papel das Forças Armadas. Por exemplo, a última série de documentos de defesa nacional, elaborados em 2016, foi aprovada pelo Congresso Nacional sem debate e sem a assinatura de um presidente da República.[liii] Com relação aos documentos elaborados em 2020, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, afirmou que haverá debate parlamentar, mas que não podem ser feitas modificações porque a Política Nacional de Defesa é uma espécie de tratado.[liv] Tal relutância é um péssimo sinal, mostrando enfaticamente a grave responsabilidade dos civis no imbróglio que descrevemos neste artigo.
Todas as mudanças acima recomendadas tendem a ser apoiadas por atores que se encontram nas posições de centro, centro-esquerda e esquerda do espectro ideológico. Porém, eles, sozinhos, não têm o poder político para efetuá-las. Da direita autoritária, deve-se esperar oposição às propostas. A chave para o êxito das reformas que respaldarmos está, portanto, nas mãos da centro-direita e dos liberais, grupos que, em alguns momentos decisivos do século 20, se aproximaram instrumentalmente da caserna para proteger seus interesses políticos e econômicos. Tal qual entre 1974 e 1985, uma aliança que vá da centro-direita à esquerda será novamente necessária para retirar os militares da política.
Por fim, é ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento do mandato de Bolsonaro resolverá o problema. Nesse sentido, é fundamental que, na próxima eleição presidencial, os candidatos mais competitivos discutam amplamente o papel das Forças Armadas. O retorno dos militares aos quartéis tem que ser uma promessa do candidato vitorioso, de modo que tenha capital político suficiente para a dura tarefa que será o restabelecimento do controle dos militares pelos civis. Se o tema não for mobilizado durante a campanha do futuro presidente, poderemos esperar que haja menos militares chefiando ministérios civis e ocupando cargos nos escalões inferiores do Executivo Federal, mas mudar o resto – reformar a burocracia do Ministério da Defesa, reduzir os privilégios das Forças Armadas e reforçar a orientação destas para tarefas intimamente ligadas à defesa nacional – será muito difícil.
Notas
[i] Laís Lis, “Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU”, G1 Política, 17 de julho de 2020, https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml. Aqui ressaltamos ser necessário estudar em profundidade esses números a partir da obtenção da listagem completa de ocupantes desses cargos. Também deve-se fazer mais estudos sobre quais cargos estão sendo ocupados e o perfil de seus ocupantes. Por exemplo, reporta-se também que a maior parte dos cargos de confiança de alto nível são ocupados por militares do Exército. Ver Ana Penido e Suzeley Kalil, “O Partido Militar e as FFAA no Governo Bolsonaro,” Tricontinental – Observatório Da Defesa e Soberania, 28 de agosto de 2020, https://bit.ly/3hAYRf2.
[ii] Gustavo A. Flores-Maciás e Jessica Zarkin, “The Militarization of Law Enforcement: Evidence from Latin America”, Perspectives on Politics, 2019, 1–20, https://doi.org/10.1017/S1537592719003906; Javier Corrales, “Latin America Risks Becoming the Land of Militarized Democracies”, Americas Quaterly, 24 de outubro de 2020, https://www.americasquarterly.org/article/latin-america-risks-becoming-the-land-of-militarized-democracies/; Thiago Rodrigues e Mônica Herz, “Brasil e suas militarizações”, Revista Rosa, 27 de julho de 2020, http://revistarosa.com/1/brasil-e-suas-militarizacoes.
[iii] David Pion-Berlin e Igor Acácio, “The Return of the Latin American Military?”, Journal of Democracy 31, no 4 (2020): 151–65.
[iv] Samuel P. Huntington, The Soldier and The State (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1957). P.89.
[v] Jorge Zaverucha, Frágil Democracia: Collor, Itamar, FHC e os Militares (1990-1998) (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000); Octavio Amorim Neto, “Democracia e relações civis-militares no Brasil”, in Sistema Político Brasileiro: uma introdução, org. Lúcia Avelar e Antônio Octávio Cintra (Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2015), 315–30. Ressalte-se também que, no governo de Itamar Franco, anterior à criação do Ministério da Defesa, havia postos ministeriais necessariamente chefiados por militares, incluindo o da Marinha, o do Exército e o da Aeronáutica.
[vi] David Pion-Berlin, “Military Autonomy and Emerging Democracies in South America”, Comparative Politics 25, no 1 (1992): 83–102.
[vii] Peter D. Feaver, Armed Servants: Agency, Oversight, and Civil-Military Relations (Cambridge: Harvard Universty Press, 2003).
[viii] Huntington, The Soldier and The State; Samuel P Huntington, “Reforming Civil-Military Relations”, Journal of Democracy 6, no 4 (1995): 9–17, https://doi.org/10.1353/jod.1995.0067.
[ix] Francisco Mamede Brito Filho, “Adeus ao retrocesso”, piauí 167 (agosto de 2020), https://piaui.folha.uol.com.br/materia/adeus-ao-retrocesso/.
[x] David Pion-Berlin, Military Missions in Democratic Latin America (New York: Palgrave Macmillan US, 2016), https://doi.org/10.1057/978-1-137-59270-5.
[xi] Huntington, The Soldier and The State; Morris Janowitz, The Professional Soldier: A Social and Political Portrait (New York: The Free Press, 1960).
[xii] Denis de Miranda, A Construção da Identidade do Oficial do Exército Brasileiro (Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2018). P.29
[xiii] Jairo Nicolau, Representantes de Quem? Os (des)caminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados (Rio de Janeiro: Zahar, 2017), cap. 4.
[xiv] Octavio Amorim Neto, “Cabinets and Coalitional Presidentialism”, in Routledge Handbook of Brazilian Politics (New York: Routledge, 2018), 293–312.
[xv] Eduardo Mello e Matias Spektor, “Brazil: The Costs of Multiparty Presidentialism”, Journal of Democracy 29, no 2 (2018): 113–27, https://doi.org/10.1353/jod.2018.0031; Carlos Pereira e Frederico Bertholini, “Coalition Management in Multiparty Presidential Regimes”, in Routledge Handbook of Brazilian Politics (New York: Routledge, 2018), 313–30.
[xvi] Octavio Amorim Neto, “The Presidential Calculus: Executive Policy Making and Cabinet Formation in the Americas”, Comparative Political Studies 39, no 4 (30 de maio de 2006): 415–40, https://doi.org/10.1177/0010414005282381; José Antonio Cheibub, Presidentialism, Parliamentarism, and Democracy (Cambridge: Cambridge University Press, 2007); Octavio Amorim Neto e David Samuels, “Democratic Regimes and Cabinet Politics: a Global Perspective”, Revista Ibero-Americana de Estudos Legislativos 1, no 1 (2011): 10–23, https://doi.org/10.12660/riel.v1.n1.2010.4123.
[xvii] Amorim Neto, “The Presidential Calculus: Executive Policy Making and Cabinet Formation in the Americas”; Cecilia Martínez-Gallardo e Petra Schleiter, “Choosing Whom to Trust: Agency Risks and Cabinet Partisanship in Presidential Democracies”, Comparative Political Studies 48, no 2 (4 de fevereiro de 2015): 231–64, https://doi.org/10.1177/0010414014544361.
[xviii] Amorim Neto, “The Presidential Calculus: Executive Policy Making and Cabinet Formation in the Americas”.
[xix] Kathryn Hochstetler, “Rethinking presidentialism: Challenges and presidential falls in South America”, Comparative Politics 38, no 4 (2006): 401–18, https://doi.org/10.2307/20434009; Anibal Pérez-Liñán, “A Two-Level Theory of Presidential Instability”, Latin American Politics and Society 56, no 1 (2014): 34–54
[xx] Debora Duque e Amy Erica Smith, “The Establishment Upside Down: a Year of Change in Brazil”, Revista de Ciencia Política 39, no 2 (2019): 165–89, http://dx.doi.org/10.4067/S0718-090X2019000200165; Maria Hermínia T. Almeida, Os Anos de Ouro: Ensaios Sobre a Democracia no Brasil (Lisboa: Livros Horizonte, 2019). P.92.
[xxi] Octavio Amorim Neto, “The impact of civilians on defense policy in new democracies: The case of Brazil”, Latin American Politics and Society 61, no 3 (2019): 1–28, https://doi.org/10.1017/lap.2019.3.
[xxii] “Governo de Bolsonaro dá a primazia aos militares”, Valor Econômico, 6 de fevereiro de 2020, https://valor.globo.com/opiniao/noticia/2020/02/06/governo-de-bolsonaro-da-a-primazia-aos-militares.ghtml.
[xxiii] Vinicius Sassine, “Governo aumenta investimentos para projetos das Forças Armadas em 2021”, O Globo, 4 de setembro de 2021, https://oglobo.globo.com/brasil/governo-aumenta-investimentos-para-projetos-das-forcas-armadas-em-2021-24623063.
[xxiv] Samuel Finer, The Man on Horseback: The Role of the Military in Politics (London: Pall Mall Press, 1976).
[xxv] Morris Janowitz, The Professional Soldier: A Social and Political Portrait (New York: The Free Press, 1960).
[xxvi] Amorim Neto, “The impact of civilians on defense policy in new democracies: The case of Brazil.”
[xxvii] Michael C. Desch, Civilian Control of the Military: The changing security environment (Baltimore: John Hopkins University Press, 1999).
[xxviii] Tânia Monteiro, “Dilma orienta Defesa a não comemorar os 50 anos do golpe militar”, O Estado de São Paulo, 14 de março de 2014, https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-orienta-defesa-a-nao-comemorar-os-50-anos-do-golpe-militar,1140999.
[xxix] Alison Brysk, Speaking Rights to Power: Constructing Political Will (Oxford: Oxford University Press, 2013), https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199982660.001.0001.
[xxx] “Justiça nega pedido de familiares para que general Leo Guedes Etchegoyen fosse retirado de relatório da Comissão Nacional da Verdade”, TRF4 Notícias, 26 de junho de 2020, https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=noticia_visualizar&id_noticia=15276.
[xxxi] Rodrigo Pato Sá Motta, “O anticomunismo militar”, in O golpe de 1964 e o regime militar, novas perspectivas (São Carlos: EdUFSCar, 2006); Celso Castro, A invenção do Exército brasileiro (Rio de Janeiro: Zahar, 2002); Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha, “Comunismo e Forças Armadas: uma relação dialeticamente conflituosa”, Mouro: Revista Marxista 5, no 3 (2011): 105–16.
[xxxii] Finer, The Man on Horseback: The Role of the Military in Politics; Eric Nordlinger, Soldiers in Politics: Military Coups and Governments (New York: Prentice Hall, 1977); Edmundo Campos Coelho, Em Busca da Identidade: o Exército e a política na sociedade brasileira (Rio de Janeiro: Record, 2000).
[xxxiii] Jorge Zaverucha e Flávio da Cunha Rezende, “How the Military Competes for Expenditure in Brazilian Democracy: Arguments for an Outlier”, International Political Science Review 30, no 4 (13 de setembro de 2009): 407–29, https://doi.org/10.1177/0192512109342689; João Roberto Martins Filho, “O governo Fernando Henrique e as Forças Armadas: um passo à frente, dois passos atrás”, Revista Olhar 2, no 4 (2000): 1–17.
[xxxiv] Zoltan Barany, “Comparing the Arab Revolts: Role of the Military”, Journal of Democracy 22, no 4 (2011): 28–39. P.29.
[xxxv] Érica Winand e Héctor Luis Saint-Pierre, “A fragilidade da condução política da defesa no Brasil”, História(Franca) 29, no 2 (2010): 3–29.
[xxxvi] João Paulo Soares Alsina Jr., Política Externa e Política de Defesa no Brasil: Síntese Imperfeita (Brasília: Câmara dos Deputados, 2006); Eliézer Rizzo de Oliveira, Democracia e Defesa Nacional: A criação do Ministério da Defesa na Presidência de FHC (São Paulo: Editora Manole, 2004); Maria Celina Soares D’Araújo, Militares, democracia e desenvolvimento: Brasil e América do Sul (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010).
[xxxvii] Amorim Neto, “The impact of civilians on defense policy in new democracies: The case of Brazil”. P.4
[xxxviii] David Pion-Berlin e Rafael Martinez, Soldiers, Politicians, and Civilians, Reforming Civil-Military Relations in Democratic Latin America (Cambridge: Cambridge University Press, 2017).
[xxxix] Maria Celina Soares D’Araújo e Celso Castro, orgs., Ernesto Geisel (Rio de Janeiro: Editora FGV, 1997). P.235.
[xl] José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e Política no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar, 2005); Jorge Zaverucha, FHC, Forças Armadas e Polícia (Rio de Janeiro: Record, 2005); Maria Celina Soares D’Araújo, Militares, Democracia e Desenvolvimento (Rio de Janeiro: FGV, 2010).
[xli] Pion-Berlin e Martinez, Soldiers, Politicians, and Civilians, Reforming Civil-Military Relations in Democratic Latin America; Phillippe Schmitter e Terry Lyn Karl, “What Democracy is, and is not”, Journal Of Democracy 2, no 3 (1991): 75–88.
[xlii] Huntington, The Soldier and The State.
[xliii] Alfred Stepan, The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1971).
[xliv] Narcís Serra, La Transición Militar: Reflexiones en Torno a la Reforma Democrática de las Fuerzas Armadas (Barcelona: Randon House Mondadori, 2008). P.48.
[xlv] Ver, por exemplo, o editorial “Gastos militares aumentam sem critérios de eficiência e qualidade”, O Globo, 5 de setembro de 2020, https://oglobo.globo.com/opiniao/gastos-militares-aumentam-sem-criterios-de-eficiencia-qualidade-1-24624688.
[xlvi] Isabella Macedo, “Rodrigo Maia defende PEC para impedir militar da ativa de assumir cargo civil”, Folha de São Paulo, 23 de julho de 2020, https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/07/rodrigo-maia-defende-pec-para-impedir-militar-da-ativa-de-assumir-cargo-civil.shtml?origin=folha.
[xlvii] Ancelmo Góis, “A sugestão sobre como encerrar a divergência do papel constitucional das Forças Armadas”, O Globo, 9 de junho de 2020, https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/sugestao-sobre-como-encerrar-divergencia-do-papel-constitucional-das-forcas-armadas.html.
[xlviii] Brasil – Ministério da Defesa, Estratégia Nacional de Defesa (Brasília: Ministério da Defesa, 2008). P.50.
[xlix] Raul Jungmann, “A responsabilidade que nos cabe”, Capital Político, 5 de junho de 2020, https://capitalpolitico.com/a-responsabilidade-que-nos-cabe/.
[l] Raul Jungmann, “Forças Armadas para quê?”, Capital Político, 21 de agosto de 2020, https://capitalpolitico.com/forcas-armadas-para-que/#.Xz_HVfPmc2U.twitter.
[li] Igor Acácio, “Os Militares Podem Responder à Presente Crise?”, Horizontes ao Sul (Rio de Janeiro, março de 2020).
[lii] Simon Schwartzman, “As guerras de hoje e de amanhã”, O Estado de São Paulo, 14 de agosto de 2020, https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,as-guerras-de-hoje-e-de-amanha,70003398892.
[liii] Cleomar Almeida, “’Congresso tem se omitido na definição do papel das Forças Armadas’”, Fundacão Astrojildo Pereira, 20 de agosto de 2020, http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2020/08/20/congresso-tem-se-omitido-na-definicao-do-papel-das-forcas-armadas-diz-raul-jungmann/.
[liv] Tânia Monteiro, “Após entregar plano da Defesa, ministro cobra investimentos”, GaúchaZH, 23 de julho de 2020, https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/07/apos-entregar-plano-da-defesa-ministro-cobra-investimentos-ckcyno0hx000n01h8ptqgwwzq.html.