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INTRODUÇAO
Grandes potências possuem grandes estratégias, algumas delas transparentes, outras de forma mais disfarçada, segundo seus objetivos: alguns destes se chocam com a estrutura essencialmente multilateral, na presente fase das relações internacionais, regida teoricamente pela Carta da ONU e o aparato construído em torno dela nos últimos 80 anos. A estratégia dos Estados Unidos é relativamente aberta e conhecida, e o país não hesita em se opor ao multilateralismo quando seus interesses maiores estão em jogo. Rússia e China certamente também possuem as suas, menos transparentes, uma vez que disputam espaços estratégicos com o atual país hegemônico. A União Europeia ainda não conseguiu unificar adequadamente sua estrutura conceitual e operacional para entrar no grande jogo e afirmar seus maiores interesses, que são, provavelmente, os mais compatíveis com o atual sistema diplomático multilateral.
O Brasil não é uma grande potência, mas uma potência média regional, e por isso falar em “grande estratégia” pode parecer pretensioso demais para um país que enfrenta problemas sobretudo de ordem interna, de molde a poder se qualificar para ser um ator construtivo, ativo e um agente plenamente participativo da agenda internacional, em especial numa fase da política internacional novamente tensa no plano das relações interimperiais. Atualmente, o mundo carece, basicamente, de uma nova estrutura para a segurança internacional, ao mesmo tempo em que o Brasil exibe desafios de monta em sua segurança interna. Assim, em lugar de falar de uma “grande estratégia”, no mesmo nível das grandes potências mundiais, caberia focar a atenção e os esforços internos numa agenda sobre o lugar do Brasil no mundo, a base indispensável sobre a qual o país poderá afirmar uma ação externa mais ativa e positiva, em primeiro lugar na própria região, depois no seu entorno geográfico (que compreende o outro lado do Atlântico), em terceiro lugar na comunidade das democracias de mercado e, de forma mais ampla, no plano global.
A divisão política interna e a polarização de opiniões impedem que se discuta e, muito menos, que se forme consenso sobre um projeto nacional ou sobre a relevância do Brasil no mundo, suas prioridades e vulnerabilidades, com uma visão estratégica de médio e longo prazo. Essa circunstância, porém, não deve impedir que essa questão seja discutida pela sociedade civil.
O documento Uma Estratégia para o Brasil – Lugar do Brasil no Mundo cumpre essa função e não pretende esgotar todos os desafios colocados presentemente à nação, mas está vocacionado a identificar as principais questões, a definir os meios disponíveis para a ação do Estado (ativos mais relevantes) e apontar os objetivos que precisamos atingir no curto e no médio prazo. Uma estratégia desse tipo busca alcançar a realização de objetivos nacionais prioritários (a serem definidos como primeira etapa), por meio de uma adequada combinação de meios, ou recursos, para atingir as finalidades pretendidas, e tanto os meios, quanto os fins, não precisam estar definidos unicamente, ou principalmente, pelas armas ou pela diplomacia. O essencial do esforço interno da nação brasileira precisa estar concentrado na economia e no social, bases indispensáveis a qualquer projeção externa do país.
O trabalho O Lugar do Brasil no mundo apresenta uma visão ampla das questões internas e externas e está complementado pelos documentos sobre a Política e Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco de Defesa.
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A NOVA GEOPOLITICA GLOBAL E OS PAISES EMERGENTES
2.1 A NOVA ECONOMIA
Em termos econômicos, desde o fim da Grande Guerra, em 1945, a força dominante é o liberalismo, com a redução do papel do Estado e o livre comércio em conformidade com o sistema de Bretton Woods (FMI, BM, GATT e depois OMC). A globalização, que aproximou países, empresas e pessoas, possibilitou a proliferação de acordos comerciais e o estabelecimento de cadeias produtivas baseadas na eficiência. O fim da URSS em 1991, com a nova ordem baseada em uma única superpotência, a entrada da China na OMC em 2001 e a concentração das cadeias produtivas para a China, foram alguns dos marcos na ordem criada em 1945. A volta da China como potência econômica e comercial global, traz o elemento geopolítico na cena econômica. Com Donald Trump, em 2017, são introduzidas medidas restritivas dos EUA em rota de colisão contra a China, começa o esvaziamento da OMC e a perda de força das regras multilaterais de comércio. Essa tendência é agravada pela pandemia e mais recentemente pelos conflitos Rússia/Ucrânia, Israel/Hamas/Hezbollah, o novo regime na Síria, as tensões entre China e Taiwan e a eleição de Donald Trump, acelerando a configuração de uma nova ordem econômica.
A nova ordem econômica mostra que a eficiência na definição de políticas econômicas é substituída por objetivos de segurança, soberania e poder. O livre comércio está sob ataque com o esvaziamento e enfraquecimento da OMC, a negociação de acordos comerciais regionais (não bilaterais), a realocação das cadeias produtivas, o crescente número de restrições comerciais por razões políticas, pela busca de autossuficiência são algumas das mudanças. A globalização passa por importantes ajustes com a realocação das cadeias produtivas, pelo aumento dos subsídios, do custo transporte e pela desorganização mercado agrícola e energético. Considerações sobre meio ambiente e mudança de clima passaram a ter impacto sobre as negociações comerciais. O nacionalismo representado pelo fortalecimento das economias domésticas para conseguir uma autonomia soberana em áreas consideradas estratégicas e a definição de novas políticas industriais afetaram diretamente o liberalismo e o livre comércio, gerando tensões entre os EUA e a Europa, com impactos globais, em especial sobre os países em desenvolvimento. O populismo fortalece o intervencionismo protecionista. Surge a geoeconomia, onde considerações de poder, com base na segurança nacional, passaram a influir na aplicação de restrições comerciais como arma política, como as sanções, que incluíram, entre outras, a limitação dos semicondutores, a retirada de empresas chinesas da Bolsa de NY e o congelamento de reservas internacionais de terceiros países. Assim, a emergência da China e da Ásia como eixos de poder econômico, a disputa com os EUA, as guerras Rússia/Ucrânia e Israel/Hamas/Hesbollah, podem levar a uma nova Guerra Fria, em outras bases, com divisão do mundo (Ocidente/Anti-Ocidente), não em função de disputa ideológica ou militar, mas econômica, tecnológica e comercial.
Em resumo, a nova ordem econômica está baseada na segurança de abastecimento e não no “just in time”; na realocação das cadeias produtivas (nearshoring e não offshoring); nas preocupações com o meio ambiente e a mudança do clima, na segurança energética e alimentar; no rápido avanço das tecnologias em várias áreas (inteligência artificial, computação, biotecnologia); na formação de blocos regionais; no uso da força, por meio de instrumentos econômicos e comerciais (utilização da moeda e de restrições tarifárias) como meio de alcançar objetivos geopolíticos, expressos na geoeconomia e o mundo com crescimento reduzido, com altas taxas de juro e inflação.
Esse é o pano de fundo quando se afirma que a geopolítico e a geoeconomia mudaram o mundo. São muitas as consequências negativas da nova ordem econômica sobre o Brasil. O enfraquecimento do multilateralismo, com a perda de relevância da OMC, deixa países como o Brasil sem proteção jurídica para o desrespeito das regras internacionais. As restrições às exportações brasileiras, sobretudo pela política ambiental em relação à Amazônia, assim como aquela em função da aprovação de nova regulamentação europeia de desmatamento, e as compensações sobre emissões de gas de efeito estufa devem ser acompanhadas e superadas.
- A NOVA ORDEM INTERNACIONAL
A Ordem Internacional nos últimos tempos vem se caracterizando pela incerteza e insegurança. As transformações na economia global, a pandemia, as tensões entre os EUA e a China, a Guerra da Rússia na Ucrânia, a guerra entre Israel e o Hamas em Gaza e o novo regime na Síria estão afetando todos os países. Os ataques terroristas da organização militar Hamas a Israel e a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxeram um elemento gravíssimo ao cenário global pelo impacto econômico e político que poderão acarretar, se a escalada dos conflitos não for contida podendo levar `a ameaça de guerra nuclear, caso haja um ataque ao Irã.
Comparativamente à curta dominância indisputada dos EUA, logo após a implosão do socialismo no início dos anos 1990, até a sua ação unilateral de invasão do Iraque, em 2003, quando a unanimidade sobre sua liderança global começou a ser contestada, o período atual já não é tão promissor quanto o foi naqueles anos de relativa convivência pacífica entre as grandes potências. O governo de Washington certamente agravou o grau já latente de tensões econômicas e militares com respeito à China. A Rússia, depois de longa letargia e recuperação do desastre econômico dos anos 90, começou a reemergir, sob a liderança de Vladimir Putin, tornado o líder indisputado de uma potência sobretudo militar, ajudado pela elevação excepcional dos preços dos combustíveis fósseis.
O enfraquecimento do multilateralismo, o fortalecimento do nacionalismo, as preocupações com o meio ambiente e a mudança do clima, a geoeconomia e os avanços tecnológicos são algumas das facetas da nova ordem internacional.
A nova geopolítica tem uma dimensão geográfica relativamente similar à da antiga confrontação bipolar – Leste-Oeste – mas tem contornos econômicos, sobretudo comerciais e tecnológicos, bastante diferentes da primeira Guerra Fria: a ascensão mercantil da China, sua plena capacitação para a quinta revolução industrial, ao lado do rebaixamento econômico da Rússia, introduzem um novo cenário para os países em desenvolvimento. No período anterior, praticamente a totalidade do então chamado Terceiro Mundo mantinha relações econômicas com as economias avançadas do Atlântico Norte, várias ex-metrópoles coloniais. Atualmente, a China é a primeira parceira comercial de mais de uma centena dos países em desenvolvimento e emergentes, entre eles o Brasil, desde 2009. Daí o interesse destes países na consolidação de mercados e na atração de investimentos e empréstimos a partir da segunda economia global. Consequências políticas daí advêm, como o recente interesse demonstrado por muito deles numa admissão ao bloco do Brics.
Desenha-se um novo cenário internacional, com o mundo dividido entre o Ocidente (EUA, EU, Japão, Australia e outros países) e um movimento liderado pela China, tendo o BRICS ampliado como embrião.
- PAISES EM DESENVOLVIMENTO E PAÍSES EMERGENTES
A evolução econômica e política dos países em desenvolvimento tem sido extremamente desigual entre os continentes e sub-regiões: desempenho satisfatório na Ásia Pacífico, dinâmica desigual na Ásia do Sul, com exceção da Índia (que vem experimentando notável impulso modernizador), quase estagnação no Oriente Médio e na América Latina, e grande diversidade de situações na África, mas em todas essas zonas existem países que lograram progressos relativos ou, em contraste, suportam crises recorrentes, com aumento dos desequilíbrios estruturais, desigualdades sociais, criminalidade e rupturas políticas.
O baixo crescimento das democracias de mercado e o arrefecimento da expansão econômica chinesa nos anos recentes não têm oferecido as oportunidades esperadas para ajudar os países mais pobres a reduzir seus próprios entraves internos. A cooperação ao desenvolvimento tem encontrado obstáculos políticos, tanto no plano multilateral, quanto nas relações bilaterais, a despeito da existência de muitos fundos institucionais dotados de montantes apreciáveis de recursos para fins de investimentos diretos, infraestrutura ou projetos governamentais, sempre dependentes de bons projetos ou de um ambiente regulatório favorável a retornos adequados.
A crise de 2008, centrada nos países avançados, assim como a introversão trumpista no plano multilateral, diminuíram a possibilidade de grandes conferências nas Nações Unidas em favor dos países em desenvolvimento; por outro lado, o acirramento das tensões entre as duas maiores economias, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia (com uma aliança reforçada e reafirmada com a China) torna essa possibilidade ainda mais remota. Nessas condições, os países em desenvolvimento não poderão contar com grandes esquemas consensuais patrocinando iniciativas ambiciosas no plano multilateral – na vertente comercial, de assistência ao desenvolvimento ou outras –, mas terão de encontrar os seus próprios caminhos entre ofertas concorrentes de cooperação, como no âmbito da Nova Rota da Seda chinesa ou nos esquemas financeiros propostos pelos europeus ou americanos.
Nesse contexto, surgem os países chamados de emergentes como a Índia, a Indonésia, os países asiáticos, a Turquia, a Arábia Saudita, o Irã, o Brasil e o México que gradualmente se transformam em polos de poder político, econômico e comercial.
Na atual conjuntura, os países em desenvolvimento terão, mais do que em outros momentos, defender seus interesses e buscar aproveitar, da melhor maneira possível, as novas oportunidades criadas pelas transformações tecnológicas.
3.O LUGAR DO BRASIL NO MUNDO
Como uma das dez maiores economias do mundo, nas últimas três décadas aproximadamente, o Brasil sempre teve uma posição de destaque no concerto mundial, em primeiro lugar na própria América do Sul e na América Latina, em segundo lugar, no contexto mais amplo do mundo, principalmente nos organismos multilaterais, como em comércio, como parte de foros mais restritos – Green Room do antigo Gatt, G20, BRICS – e, desde o início do milênio, como um dos principais fornecedores de matérias primas, em especial na área alimentícia e mineral; um dos países que, junto com o Japão, mais esteve presente, como membro não permanente, no Conselho de Segurança. Grande ator e protagonista ambiental, o Brasil é incontornável, nas grandes negociações e iniciativas multilaterais e regionais, em especial no tocante ao meio ambiente, mudança de clima, transição energética e segurança alimentar.
Do ponto de vista interno, as preocupações centrais do Brasil atual são defesa da democracia, desenvolvimento social (combate `a fome e `a pobreza), educação, desenvolvimento sustentável, preservação da Amazônia com o fim do desmatamento da floresta, transição energética, crescimento econômico, reformas estruturais, simplificação e desburocratização, nova política industrial, fortalecimento da defesa comercial, unilateralismo nas decisões dos países desenvolvidos no tocante `as sanções econômicas e comerciais, liberdade de imprensa e desinformação, combate à violência e à corrupção.
Na área externa, desigualdade entre os países, em todos os aspectos, políticos, econômicos, comerciais, sociais deve ser prioridade, com reiteradas manifestações do interesse brasileiro em cumprir todos os compromissos internacionais e domésticos para buscar a redução desses desequilíbrios. Os reduzidos progressos nos programas internacionais para esse objetivo, inclusive a Agenda 2030 e seus 17 objetivos devem ser criticados, tendo sido anunciado um 18o. programa a ser implementado, o Brasil sem fome.
O Brasil tem reiterado críticas `a inoperância e a paralisia do Conselho de Segurança da ONU e a necessidade de sua ampliação entre os membros permanentes e nos rotativos e insiste na reforma da governança dos organismos internacionais, em especial do Banco Mundial e do FMI, tanto na governança, quanto nos recursos destinados aos países mais pobres. A necessidade de se buscar a paz na Europa, reiterando a posição de equidistância do Brasil ao condenar a invasão e a perda da integridade territorial da Ucrânia, contrárias `a Carta das Nações Unidas tem sido seguidamente observada.
O Brasil aspira ter um papel de liderança nos temas que considera prioritários para a segurança global. Com a volta do Brasil ao cenário internacional, torna-se mais urgente uma visão clara sobre qual deve ser o lugar do Brasil no mundo, quais os objetivos nacionais nas áreas em que tem poder específico e como o país pode contribuir para alcançar a redução das desigualdades em todos os aspectos. Nesse contexto, o Brasil vai liderar os entendimentos nas próximas reuniões, em 2025, da COP 30 e do BRICS, que serão realizadas em solo brasileiro.
Terão de ser definidas as políticas para o BRICS ampliado, para as negociações com a OCDE e para reduzir as vulnerabilidades externas, expostas, depois da pandemia e da guerra da Ucrânia, como no caso da Defesa, pela dependência externa brasileira dos equipamentos bélicos da OTAN.
Nas negociações comerciais, o governo brasileiro, tem intensificado entendimentos com o objetivo ampliar o número de acordos comerciais. Nesse sentido, tem liderado as conversações visando a assinatura e ratificação do acordo do Mercosul com a UE, os entendimentos com a EFTA, os Emirados Árabes Unidos, a Malásia, o Vietnã e a Indonésia, além de concluir a negociação com Singapura.
A despeito de um baixo coeficiente de abertura externa, o Brasil exibe uma geografia comercial praticamente universal e uma estrutura diversificada na composição do comércio, mas com uma tendência à antiga concentração nos produtos primários de mais de meio século atrás, dada à sua perda de competitividade internacional nos manufaturados. Imigração, em períodos históricos anteriores, investimentos diretos estrangeiros desde os anos 1950, foram os principais fatores do seu processo de modernização, mais recentemente também despontando como investidor externo e por uma característica menos positiva: a “exportação” de seus nacionais, inicialmente mão-de-obra não especializada, atualmente quadros capacitados e cientistas igualmente. A compensação pela diáspora também virá no futuro, como no caso de outros países de emigração, pela remessa de divisas ao país e pela intensificação de laços comerciais e de vários outros tipos de intercâmbios humanos; no curto prazo, porém, existe o temor de uma fuga de cérebros, contrária aos interesses nacionais no momento de avanço tecnológico.
Na retomada de um papel atuante para o Brasil, a ênfase no multilateralismo, na multipolaridade, na restauração da credibilidade e na melhora da percepção externa estiveram no centro das preocupações. A reforma dos organismos multilaterais, em especial do Conselho de Segurança da ONU e o fortalecimento da OMC, bem como a atualização da agenda brasileiras nessas instituições, desgastadas nos últimos anos, faz parte da ação do Itamaraty. A posição de independência em relação as tensões entre os EUA e a China foi mantida, mas poderá ser testada caso a crise em relação a Taiwan se agrave. A busca do protagonismo externo deve ficar limitado realisticamente pela ausência de excedente de poder, como evidenciado pelas sugestões de formação do grupo da paz para a guerra na Ucrânia e de suspensão das hostilidades por questões humanitárias em Gaza. O Brasil apoiou a decisão da ONU de enviar tropas do Quênia para controlar a situação interna no Haiti.
A capacidade do Brasil para cumprir um papel relevante no campo da paz e da segurança internacionais terá de ser ampliada. O Brasil é uma potência média, conceito que implica certa relevância regional, no sentido de determinar equilíbrios ou orientações políticas e econômicas, sobre os quais essa “potência média” deverá exercer suas escolhas básicas, esperando que outros atores regionais se alinhem a seus procedimentos e opções. Desse ponto de vista, a despeito de constituir um grande território e uma grande economia no quadro regional sul-americano, o Brasil está longe de determinar as principais orientações políticas ou econômicas que poderiam ser adotadas pelos demais países da região ou um ator capaz de impor um quadro geopolítico determinado, com base em suas capacitações primárias no campo militar, para dentro ou para fora da região.
Mas o Brasil é um ator relevante, ou seja, possui massa e presença de dimensões relevantes, embora não tenha excesso de poder para determinar o curso dos eventos e dos processos políticos no subcontinente, mesmo mobilizando os instrumentos de sua diplomacia. No terreno das proposições de política, o Brasil poderá tomar iniciativas significativas, capazes de alterar, de maneira sensível, o peso e o papel da região no contexto mundial, sempre mantendo uma posição de independência, sem alinhamentos automáticos a qualquer país ou grupo de países.
O Brasil e a América do Sul –a única região do planeta em que o país pode atuar de forma relevante e desempenhar um papel de liderança – constituem “polos de poder” relativos do ponto de vista da geopolítica mundial. O continente é um grande fornecedor de matérias primas e de energia para o resto do mundo, um papel que, teoricamente, pode ser exercido em caráter substitutivo por diversas outras regiões. O Brasil poderia aproveitar o que há de exclusivo ao país e à América do Sul, suscetível de afetar os grandes equilíbrios planetários, em campos relevantes da geopolítica ou da geoeconomia do mundo. À parte ser um continente constituído de apreciável volume de pessoas, um contingente humano potencialmente consumidor de produtos e serviços de maior valor agregado produzidos em outras partes do mundo, a América do Sul é grande fornecedora e produtos alimentícios e minerais. Não podem ser minimizados fatores com corrente de emigrantes para o hemisfério norte, produção de quantidade apreciável de drogas e uma parte da criminalidade internacional associada a esses fluxos, mas que tampouco são exclusivos da região. Um dos papeis de uma política externa consistente com os interesses nacionais e com os da maioria dos países da região seria a de tentar mudar essa realidade negativa vinculada atualmente à região. Para isso serviria uma política externa animada por uma estratégia adequada de segurança nacional e regional para combater o crime transnacional.
A vulnerabilidade do país, em diferentes aspectos, representada pela concentração das exportações em poucos mercados e produtos, tem de ser corrigida com uma ativa busca de novos mercados (África e Índia) em ação coordenada de promoção comercial do governo e do setor privado, inclusive para melhorar a produtividade e a competitividade das empresas e da economia como um todo. Esforço político e diplomático deverá ser concentrado na assinatura e ratificação do Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia e para o ingresso na OCDE de forma a permitir a expansão do intercâmbio com a Europa e a participação do Brasil na definição das regras que irão moldar a agenda da nova economia global.
A ampliação do número de membros do BRICS e liderança da China e da Rússia colocam desafios importantes para a política externa a fim de manter a equidistância de países ou grupos de países na defesa dos interesses nacionais.
- BRASIL, POTÊNCIA MÉDIA EMERGENTE
4.1. OBJETIVOS NACIONAIS
Formalmente, uma estratégia nacional se articula em torno dos objetivos prioritários do país, o que normalmente se designa por “interesses nacionais”. Definidos na constituição, os objetivos nacionais – soberania, desenvolvimento e segurança – se trata, então, de examinar a equação permanente entre meios e fins, ou seja, a capacitação do país em alcançar seus objetivos, utilizando os meios e recursos disponíveis da forma mais eficiente possível.
Justamente, com respeito aos chamados interesses nacionais, se enfatiza a defesa da soberania nacional, a proteção do território pátrio, a preservação da independência e da integridade do Estado, agregados por outros objetivos grandiosos, embora genéricos, como a promoção do desenvolvimento do país, a industrialização, a melhoria das condições de vida da população, a segurança e várias outras metas. O trabalho de conciliar o alcance desses objetivos com os meios disponíveis pode ser objeto de algum planejamento global ou setorial ou nos diversos planos nacionais de desenvolvimento, mas geralmente se visava mais alto do que as possibilidades reais, e havia sempre o desejo de preservar as bases autônomas do desenvolvimento nacional. A desorganização econômica trazida pela hiperinflação destruiu a própria noção de planejamento estratégico, mas a conquista da estabilidade deverá trazer ao primeiro plano a necessidade de planejar o atingimento dos grandes objetivos nacionais.
O Brasil é uma potência média com objetivo de se tornar um país plenamente desenvolvido, com crescente influência global. A estratégia nacional de segurança tem “objetivos globais” visando, de certo modo, enfatizar o aspecto crucial do cenário global para a determinação das políticas mais essenciais para o país; neste caso, prioridades globais podem ser consideradas como especificamente atinentes a objetivos essencialmente nacionais ou setoriais. No entanto, assim como ocorre nas políticas de defesa ou de desenvolvimento, os objetivos têm, sim, de ser nacionais. Suas prioridades devem levar em conta o ambiente internacional do qual extraímos recursos, know-how, tecnologia e investimentos para o desenvolvimento do país, mas os objetivos das políticas setoriais precisam ser precipuamente nacionais.
Os instrumentos clássicos para combinar esses elementos materiais e os objetivos “ideais” costumam ser identificados como sendo uma combinação sempre variável entre as armas da guerra e as armas da política, ou seja: poder militar e diplomacia. Nada a ver, aqui, com qualquer teoria idealista do poder nacional, e sim com a expressão sintética de uma realidade imanente aos Estados: eles se relacionam com outros Estados, ou seja, no âmbito internacional, com base nos agentes primários de ação externa: os soldados e os diplomatas, atualmente, complementados por comerciantes, missionários, representantes de causas globais no plano ambiental ou de direitos humanos, artistas, esportistas etc.
O Brasil é um ofertante bem-sucedido de vasta gama de produtos agrícolas, pecuários e minerais, embora em nível incipiente de elaboração para consumo direto, e assim promete manter-se pelo futuro indefinido, dada a vastidão de seus recursos naturais e excelente tecnologia no setor do agrobusiness (um vasto complexo unindo o primário, a indústria e os serviços). Ele também é uma potência ambiental, mais prospectivamente do que propriamente efetiva, no momento, dadas as práticas em vastas áreas do hinterland, mas complementada por uma matriz energética amplamente renovável.
Ao examinar os objetivos nacionais, é importante ressaltar as áreas em que o Brasil é uma potência global: política ambiental e mudança de clima, segurança alimentar e transição energética. Finalmente, ele também é uma potência cultural, sobretudo no campo da música, mas este é um setor do soft power brasileiro que poderá ser melhor explorado economicamente.
4.2 DESENVOLVIMENTO
As reformas estruturais aprovadas nos últimos anos (reforma trabalhista, da previdência social, tributária) e outras ainda a serem implementadas, como uma reforma política que reduza o número de partidos e fortaleça a estabilidade política, reindustrialização e uma reforma econômica verde. Essas reformas estão modernizando a economia, melhorando a produtividade e a competitividade e deverão aperfeiçoar o regime político. Esse aperfeiçoamento passa pela virada de página da histórica interferência dos militares na política. A nova visão atividade das FFAA voltada para o crescente profissionalismo e afastamento do envolvimento político colocará fim a um período de mais de 130 anos de ameaças ao relacionamento entre civis e militares.
As novas formas de relacionamento institucional entre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo geram desafios políticos que terão de ser enfrentados para permitir a superação da estagnação política no curto e médio prazo.
Junto com os EUA, e nas últimas décadas a China, o Brasil é um dos países que mais recebe investimentos externos, dada a dimensão de seu mercado interno e os vínculos já criados com investidores europeus e americanos nos últimos cem anos. Fornecedor de produtos primários para os parceiros ocidentais, a projeção externa do Brasil se diversificou desde o grande impulso industrializador entre os anos 1950 e 70, compondo uma pauta majoritariamente manufatureira, característica em retração desde o início do século, dada a perda de competitividade externa da indústria (altos custos, com destaque para uma estrutura tributária distorcida e excessiva, ao nível da OCDE, para renda cinco vezes menor).
Ao mesmo tempo a alta capitalização e modernização tecnológica do agronegócio tornou o Brasil num dos principais produtores mundiais em alimentos, complementado por minérios e combustíveis fósseis. Por outro lado, a dependência em eletrônicos e bens de capital se acentuou no mesmo movimento. Uma característica que jamais mudou, desde as origens coloniais, é o mercantilismo nas políticas comerciais e a proteção no setor industrial. Para aumentar ou apenas preservar o seu lugar no mundo, a abertura econômica, a liberalização comercial e a reindustrialização são medidas a serem inevitavelmente adotadas em qualquer planejamento de políticas.
Os interesses externos estão vinculados a um ambiente interno, regional e mundial compatíveis com as necessidades de crescimento econômico e desenvolvimento social para o Brasil, e seus principais vetores são o comércio exterior, a atração de investimentos diretos, o relacionamento pacífico e produtivo com o maior leque possível de países, interesses que estavam anteriormente denominados de diplomacia ecumênica ou universal, sem preconceitos políticos de qualquer tipo. A tentativa de reduzir tal amplitude de relacionamentos externos a conceitos como os de “Sul Global” ou o de uma parcial visão de mundo constitui limitação, que desviaria o país do objetivo maior da diplomacia global e pragmática.
4.3 SEGURANÇA NACIONAL
Ao lado das ameaças tradicionais (guerras, terrorismo), mais recentemente surgiram outros tipos de ameaças representadas por ações públicas ou privadas, como sanções econômicas e financeiras, crimes cibernéticos, atividades do crime organizado, ações de organizações não governamentais, medidas protecionistas, limitações ao aproveitamento dos recursos minerais contra interesses concretos do país.
As novas ameaças externas e a proteção das fronteiras, programa aeroespacial em todos os seus diferentes aspectos estão na agenda prioritária do país. Uma política de defesa para o Brasil precisa ser, em primeiro lugar, uma política de segurança nacional e regional.
Alguns documentos como a Estratégia Nacional de Defesa, a Política Nacional de Defesa e o Livro Branco dessa mesma área, que vinculam esse conceito ao de desenvolvimento – ajudam a compor uma definição unificada dessa estratégia. Não existe defesa no vácuo, e esse conceito precisa ser definido com objetivos claramente determinados, justamente para lutar internamente contra o crime organizado, o narcotráfico, o tráfico de armas e de pessoas, a emigração selvagem e a corrupção e contra as ameaças externas.
O Brasil buscará aumentar sua capacidade de autossuficiência em defesa por meio de investimentos em tecnologia militar e industrial, como está sendo feito na construção de submarino nuclear e o desenvolvimento de uma indústria aeroespacial.
Com a crescente dependência de tecnologias digitais, a segurança cibernética surge com um elemento essencial da estratégia de segurança, com capacidade para proteger suas infraestruturas críticas, sistemas financeiros e dados governamentais.
O crime organizado e o tráfico de drogas representam ameaças contínuas, especialmente nas fronteiras com países produtores de drogas e na segurança urbana. Para enfrenta-las, será preciso aprimorar suas capacidades de inteligência e cooperação internacional.
Nenhum país é completamente autônomo em toda a gama de produtos de defesa. É no diálogo e coordenação da defesa nacional, inteligência, segurança pública e defesa civil que o País poderá otimizar recursos e perseguir objetivos nacionais de forma integrada. Caberia remodelar as FFAA em função de uma concepção de base industrial de segurança, num modelo interdependente e cooperativo com países mais ou menos desfrutando das mesmas concepções básicas sobre democracia de mercado. Os países mais prósperos do mundo são justamente os que convergem em suas políticas mais fundamentais, tipo G7, OCDE, OTAN. A base industrial de defesa do Brasil deve ser fortalecida e estar associada `a modernização das FFAA, com a criação, por exemplo, de uma base logística de defesa. Ambas serão tanto mais independentes quanto mais interdependente e integrada a outras bases nacionais de países com interesses convergentes.
4.4. SETORES CRÍTICOS PARA A INSERÇÃO EXTERNA
Os interesses internos estão concentrados na solução em tempo hábil dos seus mais importantes problemas, de natureza social, acima de tudo, mas que dependem de uma elevação da capacidade de resposta, por parte do Estado e da sociedade, o que exige uma revolução no campo da produtividade do capital humano. O conjunto dos desafios brasileiros constitui um volume amplo e diversificado de problemas internos (educação, saúde, tecnologia, meio ambiente), e estes são bem mais diversificados, do que a questão da produtividade e dos obstáculos associados que se apresentam para a elevação de sua taxa de crescimento. Mas esse conceito resume, de modo amplo, o núcleo central do desafio brasileiro, tanto de caráter conjuntural – ou seja, base de eventual esforço de crescimento –, quanto de ordem sistêmica (o que tem a ver, por exemplo, com a acumulação de riqueza para enfrentar a curva demográfica do envelhecimento da população, ao final do período de bônus demográfico, já em curso). Não são fáceis as soluções a esse grave problema da sociedade brasileira, e qualquer processo de correção da trajetória até aqui seguida exigirá bem mais do que simples medidas de políticas setoriais nas áreas mais relevantes, em especial no que se refere ao capital humano e aos vetores de inovação tecnológica.
4.5. POLÍTICA AMBIENTAL E MUDANÇA DE CLIMA
Trata-se da área de atividade econômica e da política setorial mais prometedora para o atual e futuro processo de desenvolvimento sustentável do Brasil. A sustentabilidade é um requerimento indispensável para o pleno engajamento do país na agenda multilateral com crescente importância desde a conferência Rio-1992. A Amazônia, no contexto das políticas globais de meio ambiente e mudança de clima tornou-se um foco de atração global e entrou na agenda política e econômica nacionais. É parte importante da projeção da imagem do Brasil no mundo e o foco de atração de investimentos, através da elaboração de bons projetos no terreno dos diversos mercados de descarbonização das atividades produtivas, inclusive e principalmente nas florestas ainda em pé. O desmatamento vai continuar decrescendo gradualmente nos anos à frente, impondo desafios às promessas do Brasil para o horizonte 2030, mas a feitura de bons projetos nessa área é a nossa melhor credencial para enfrentar a vigilância dos ambientalistas daqui para a frente. Nossa grande contribuição para a consecução dos objetivos do Acordo de Paris de 2015 situa-se precisamente nessa área e é onde os esforços multiministeriais do governo devem se concentrar nos próximos anos.
Esta é a área na qual o Brasil não só poderá se destacar internacionalmente, como também tomar a iniciativa e liderar movimentos, esquemas e acordos consensuais dentro do conceito geral de sustentabilidade, em especial no âmbito das florestas tropicais e os seus recursos da biodiversidade. A condição não é tanto negociar novos acordos ou compromissos multilaterais, mas aplicar efetivamente o estoque atual de engajamentos nacionais em torno dos objetivos já assumidos no campo do aquecimento global, da proteção dos recursos naturais, da fauna e da flora, assim como na transição energética e combustíveis renováveis. Por outro lado, o próprio sucesso do agronegócio, especialmente na produção de carnes, apresenta ameaças à vertente ambiental e formação de gases de efeito estufa. Um adequado planejamento estratégico na área ambiental deve levar em conta todos esses fatores, além das perspectivas que o mercado de carbono oferece ao Brasil. Reafirmando os compromissos do Brasil com o meio ambiente e a transição energética, o desenvolvimento da exploração do petróleo na margem equatorial, a exemplo do que fazem outros países vizinhos, deverá ser levado adiante.
4.6. SEGURANÇA ALIMENTAR
Segundo relatórios divulgados pela OCDE e pela FAO, Brasil e Estados Unidos serão os principais provedores de alimentos para os contingentes populacionais adicionais num mundo ainda expansão demográfica, os EUA sobretudo pela via da produtividade, o Brasil também por essa via, mas favoravelmente pela disponibilidade de terras agricultáveis (e para pecuária), sem avançar sobre a mata virgem e áreas preservadas.
Não há nenhum desdouro em ter a pauta exportadora novamente concentrada na exportação de produtos primários, sobretudo grãos e carnes. Trata-se de simples aproveitamento de nossas vantagens competitivas, sem descurar de projetos de beneficiamento dessa produção na escala superior de adequação ao consumo direto a partir dessas exportações. O abastecimento do mundo é a nova marca mundial do Brasil, depois de ter sido o país do açúcar e do café, momentaneamente da mineração (onde temos fortes concorrentes). Não se trata mais de atividade primária, mas sim um complexo industrial e de serviços totalmente engajado na pesquisa científica e no incremento tecnológico da produção. A segurança alimentar do mundo deve ser o grande objetivo do comércio exterior nacional.
Mesmo sendo um país essencialmente agrícola, como sempre se proclamou, pelo menos até o grande impulso industrializador, dos anos 1950 aos 80, o Brasil sofria carências e insuficiências recorrentes de abastecimento, não tanto por obstáculos estruturais, mas por dificuldades das políticas setoriais (controles de preços, insuficiência de crédito e seguro). A crise fiscal dos anos 1980-90, assim como a maturação da empresa estatal do setor levaram à modernização, capitalização e internacionalização do setor primário, o que elevou o Brasil ao primeiro plano do abastecimento mundial, com produtividade e competitividade crescentes.
O Brasil não possui, portanto, qualquer insegurança alimentar nacional, assim como, de maneira geral, o mundo em seu conjunto, a não ser pelos tradicionais problemas de renda, ou conflitos políticos e militares. Na verdade, o Brasil será, já é, o grande provedor alimentar do mundo no século XXI, com base em possibilidades intrínsecas e produtividade adquirida. No plano diplomático, o Brasil apresentou programas de combate à fome, geralmente com base no fornecimento importado, o que elude a origem do problema. A insegurança alimentar, de países geralmente muito pobres, advém da incapacidade produtiva, condições naturais desfavoráveis ou conflitos sociais, políticos ou militares, pontos focais de uma atuação diplomática eficiente por parte do Brasil.
4.7. TRANSIÇÃO ENERGÉTICA
Nossa matriz energética já é uma das mais limpas do mundo, mas caberia não esmorecer nos esforços de upgrade e de “catch-up” nas tecnologias prospectivas, pois outros países têm feito progressos significativos na produção de equipamentos e fontes de novos recursos energéticos renováveis. O hidrogênio verde tem sido objeto de atenção do setor privado e de projetos legislativos estimulando o seu uso, sobretudo como novo produto de exportação, ao lado do etanol. Nessa área, a segurança energética nacional não pode ser um modelo de introversão econômica, pois a integração energética regional também precisaria voltar a ser inserida nos projetos de harmonização regulatória nos esquemas de coordenação integracionista na América do Sul.
A transição energética justa – que inclua benefícios para a população mais carente e os povos nativos – deve continuar a ser um objetivo nacional.
Todos os países dotados de planejamento no campo energético vêm fazendo progressos significativos na conversão de suas respectivas matrizes energéticas para fontes renováveis. Nos últimos anos, cresceu a importância nessa matriz dos combustíveis fósseis e usinas térmicas movidas a diesel, tanto pela abundância de novos campos off shore, quanto pelas insuficiências hidrográficas. Cabe ainda aproveitar as fontes de petróleo enquanto for politicamente possível, diplomaticamente aceitável. Mas as bases principais das energias limpas do futuro não estarão tanto baseadas nos recursos naturais, nos quais a primazia brasileira é imbatível, mas nos vetores criados a partir das inovações tecnológicas, que incidirão sobre a biomassa, a eólica e a solar, ou outras ainda em estágio exploratório. Etanol e hidrogênio verde representam grandes possibilidades em curso de desenvolvimento e devem integrar a segurança nacional nessa área.
4.8. VULNERABILIDADES
As vulnerabilidades brasileiras não estão na baixa capacitação militar, para defesa ou projeção externa, ou na baixa competitividade de nossas indústrias – o que são evidências notórias –, mas todas nos terrenos sociais, da educação e, sobretudo, na baixa qualificação do capital humano, que deriva diretamente da qualidade do fator precedente.
Tais vulnerabilidades – visíveis e registradas nos rankings comparativos oferecidos por entidades internacionais e think tanks respeitados – não são apenas o resultado do histórico descolamento do Brasil com o mundo, mas o acúmulo gradativo de deficiências estruturais nunca corrigidas, inclusive pela baixa percepção dessas elites quanto à gravidade das causas determinantes das deficiências propriamente internas.
Os traços econômicos mais relevantes do Brasil contemporâneo, pelo lado das limitações percebidas, poderiam ser assim resumidos: Baixa capacidade tecnológica de transformação. Mercado interno ainda de baixa renda. Envelhecimento rápido da população. Altos custos previdenciários e de gastos com saúde. Sistema político disfuncional pela fragmentação partidária. Aumento da delinquência e de organizações criminosas. Gastos públicos elevados, baixa produtividade devido a má educação da massa. Burocracia estatal predatória. Atraso na incorporação e aproveitamento da Inteligência Artificial e 5 G. Essas limitações, no setor externo, são representadas por políticas setoriais industrial e comercial incompatíveis com o aumento da oferta externa. Baixo coeficiente de abertura externa. Poupança interna insuficiente. Oferta externa de baixo valor agregado. Baixa produtividade. Inserção reativa a globalização. Baixa competitividade externa. Concentração de mercados e produtos no comércio exterior.
Algumas considerações adicionais são, porém, relevantes para ilustrar os argumentos de natureza econômica que cabem ressaltar para o Brasil, não apenas no contexto do Brics, mas também no que se refere à sua inserção na economia global. Elas têm a ver, justamente, com as limitações estruturais mais evidentes, que dificultam os passos que o Brasil precisaria dar para conseguir galgar patamares mais altos de crescimento econômico e de desenvolvimento social, bem como para lograr uma inserção mais afirmada do país no sistema global de nações avançadas: elas são, a inovação tecnológica e a educação da população, provavelmente na ordem inversa.
O Brasil é um grande ofertante de produtos que correspondem à sua matriz secular de economia extrativa e de base agrícola, mas tem enormes dificuldades para se inserir nos mercados de produtos de maior valor agregado, como os da eletrônica avançada, os da química fina e, de forma geral, produtos intangíveis, ou da inteligência. São poucas as exceções a esse quadro, e elas se situam na exploração de petróleo em altas profundidades, por uma empresa estatal, a Petrobras (mas aberta a contratos com fornecedores privados), e na indústria aeroespacial, com o único exemplo da Embraer (uma ex-estatal, privatizada e aberta totalmente à integração produtiva com quaisquer companhias estrangeiras). O setor financeiro também é moderno e funcional, embora muito protegido e altamente concentrado, agora sofrendo a concorrência dos bancos digitais.
O programa Nova Política Industrial Brasil, com metas definidas e acompanhamento de suas políticas, deverá até 2033 estimular a modernização do setor industrial e torná-lo mais competitivo para permitir maior participação dos produtos manufaturados brasileiros no mercado externo.
5.ESTRATÉGIA POR REGIÃO
O mundo pós-descobrimentos, pós-westfaliano e pós-conflitos globais dos grandes impérios do século XX continua tão diverso como jamais foi nos séculos anteriores, um mosaico de nacionalidades, de povos e de culturas geralmente caminhando pelas vias estreitas do nacionalismo pós-absolutista e pós-descolonização. Da meia centena de Estados fundadores da ONU às duas centenas de entes nacionais existentes atualmente – sem esquecer os nacionalismos regionais em vários desses Estados –, não há como manter uma política externa uniforme para todos eles, e sim medir as possibilidades externas em função de uma diplomacia suficientemente preparada para trabalhar com tamanha diversidade de situações e de variações temporárias em função de políticas cambiantes.
5.1. AMÉRICA DO SUL E HEMISFÉRIO
São a nossa circunstância, embora não a fatalidade, mas cabe reconhecer a necessidade, como fez Rio Branco, da importância de se manter relações as mais estreitas possíveis com todos os nossos vizinhos, o que nem sempre é fácil, dado o caráter da política em vários deles, inclusive no próprio Brasil, e da diversidade ideológica. É a prioridade natural da política externa e a que requer uma abertura e compreensão às peculiaridades regionais: recomenda-se apenas isto, maior abertura, justamente, eventualmente até unilateral, o que pode ser absorvido pela maior economia da América do Sul, nosso terreno preferencial de atuação diplomática.
Liderança regional é um conceito difícil do ponto de vista diplomático, pois que desperta reações negativas entre vizinhos e outros países médios. Liderança não se proclama, mas é adquirida, e reconhecida, naturalmente, como realidade econômica e diplomática, ao longo de uma trajetória de cooperação desinteressada e generosa. Ela depende que o Brasil se abra, de forma unilateral, e sem esperar contrapartidas, aos vizinhos regionais da América do Sul, que são nossa circunstância incontornável.
Como o país economicamente mais avançado e competitivo do continente – com fortes diferenças setoriais em alguns ramos produtivos –, o Brasil tem condições de abrir seus mercados aos demais vizinhos, sem temer desindustrialização ou impactos internos decisivos. Para tal objetivo, caberia tornar o Mercosul compatível com o propósito mais amplo da abertura econômica, condição essencial para nossa própria modernização produtiva.
O Brasil procurará desenvolver um projeto de colaboração com os países da região para fortalecer a democracia e os direitos humanos, para melhorar a integração física (ferroviária, rodoviária e hidroviária), para proteger o meio ambiente na Amazonia e para combater a violência e o crime organizado que ameaça a governabilidade de muitos países latino-americanos.
5.2. ÁSIA
A mais pujante e dinâmica região da economia mundial desde agora e no futuro previsível não substituirá o mundo norte-atlântico em termos de ciência, tecnologia e inovações no horizonte previsível. Cabe organizar a presença brasileira com tanta atenção quanto fizemos no passado em relação à Europa. Em termos econômicos é certamente uma das prioridades, ainda que não nos valores e princípios da governança global. O Brasil é um país ocidental, mas a partir dos últimos 15 anos, passou a depender fortemente do mercado asiático para commodities agrícolas, minerais e energéticas. O que coloca grandes desafios geopolíticos para a política externa brasileira. A aproximação com a ASEAN tornou-se importante e o esforço para ampliar os acordos comerciais com a região poderá facilitar a abertura de novos mercados para os produtos brasileiros.
5.3. EUROPA
A base de nossa cultura e afinidades emotivas, ainda é uma fonte de inspiração para políticas sociais e educativas mais conforme o chamado espírito nacional. Também foi a mais importante base de nossa modernização econômica e social nos últimos dois séculos, com a qual devemos preservar e ampliar as mais estreitas das nossas afinidades políticas e culturais. A rejeição da chamada ordem global de Bretton Woods, que é essencialmente americana, também implicaria o afastamento com o mundo europeu da atualidade, preservado justamente por essa aderência a uma construção relevante em termos de valores e princípios, em temos de certo retorno ao autoritarismo de épocas passadas. Terceiro mercado para os produtos brasileiros, a cooperação política, econômica e comercial poderá ser ampliada com a assinatura do acordo cooperação e comércio entre o Mercosul e a União Europeia e com a Area de Livre Comercio de Europa. (EFTA)
5.4. ÁFRICA
Emotivamente relevante pela importação involuntária de milhões de antecessores, cabe valorizar pelas oportunidades futuras de crescimento e de intercâmbios positivos para ambos os lados, não necessariamente por uma suposta dívida histórica, que não se sustenta apenas por si, em virtude de outras importantes aquisições demográficas na sequência da construção da nação. Faz parte do entorno geográfico mais próximo. Cabe refletir adequadamente no perfil da diplomacia regional, com vistas a identificar possibilidades de cooperação e de expansão do intercâmbio bilateral com os países africanos. A possibilidade de maior aproximação comercial e de cooperação deverá ser explorada com a negociação de acordo de livre comércio e a ampliação dos acordos de cooperação e assistência técnica.
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CONCLUSÃO
Uma estratégia nacional de segurança é um empreendimento coletivo a ser construído com aportes das elites econômicas e políticas, com os tecnocratas do policy making, em especial os diplomatas, num saudável intercâmbio com nossos parceiros externos mais chegados em termos de valores e princípios, sem grandes ilusões quanto aos interesses dos grandes impérios, sempre exclusivistas. Trata-se de um trabalho constante de montagem e correção de prioridades, não um blue print de soluções acabadas e determinativas. Ela deve partir da modéstia de nossas possibilidades intrínsecas, da insuficiência de nossos assets, e afastar-se da miragem da originalidade nacional tendente a buscar autonomia em todos os vetores de afirmação econômica e diplomática.
O interesse nacional está na busca de soluções que resultaram das experiências práticas de nações hoje em grau razoável de desenvolvimento econômico, social e político, claramente identificadas nos indicadores de IDH e nos rankings de desempenho setorial propensos ao progresso de seus povos. A originalidade consiste mais na adaptação dessas soluções às peculiaridades nacionais do que na busca incessante de um modelo exclusivamente nacional, embora essa seja a tendência inevitável. Partidos são entidades de direito privado, assim como ideologias são múltiplas e contraditórias. Em função disso, em vista da grande divisão existente na sociedade brasileira, como ocorre em muitas partes do mundo, seria difícil um documento sobre estratégia nacional ser desenvolvida com isenção e objetividade por partidos políticos.
Na atual conjuntura, a estratégia nacional pode ser vista no contexto de projetos nacionais internos e externos. Ela se apresenta com uma visão de futuro e deve mirar no que é o ideal, embora os meios não estejam imediatamente disponíveis. Realista, ela deverá ser construída com vistas aos requerimentos da maioria. As disputas políticas puramente partidárias tornam difíceis esse ideal, daí a necessidade de ampliar o trabalho com entidades sociais que convirjam quanto aos objetivos últimos do país.
O Brasil busca consolidar seu lugar no mundo como uma potência média regional, como um ator relevante em questões globais (ambientais, econômicas, diplomáticas) e ao mesmo tempo garantir que sua soberania e integridade territorial estejam protegidas. O país equilibra sua defesa militar com políticas de diplomacia e cooperação internacional, sempre atento aos desafios regionais e globais que afetam sua segurança nacional. Para preservar sua independência e equidistância, sua ação externa deve ser mantida sem influência ideológica e sem alinhamentos automáticos com países ou grupo de países.